A propósito de nada!


Nos momentos inusitados lembramo-nos de coisas muito estúpidas, desenquadradas, reparamos em coisas que não têm nada a ver.
Lembro-me perfeitamente das luzes do corredor do Hospital deitada na marquesa, quando carregada como um vulgar carro de compras, a caminho do bloco operatório, por um maqueiro que discutia o jogo de futebol da véspera, e eu reparava nas luzes, umas tapadas de vidro martelado, outras de acrílico fosco e naquela altura esforcei-me por descobrir um padrão.
Lembro-me de um ramo de flores particularmente bonito, colocado junto ao caixão do meu pai, com uma inscrição qualquer numa fita de seda, e eu reparei na forma invulgar das pétalas das flores e no gosto requintado de quem tinha juntado no mesmo ramo, girassóis e espigas, num arranjo campestre e emotivo, pensei que o meu pai gostaria daquele ramo.
Não me esquece também, de estar á espera de um resultado de uma análise vital, de saber se o meu filho mais novo teria ou não uma doença grave, depois de um noite de cateteres e seringas, olhar pela janela daquele corredor, ver o acordar de um grupo de abelhas a posicionar-se à espera que as flores abrissem, num esquema altamente organizado, e abstrair-me assim do relógio que parecia brincar de forma malévola comigo arrastando os segundos e os minutos, numa espera agonizante.

E lembro-me de cheiros, do cheiro de terra molhada num dia em que decidi sozinha que não queria um amor que me fosse sufocando lentamente, lembro-me do cheiro da terra molhada porque era verão, aquela tempestade adivinhava mudanças.
E lembro-me estar em Paris, numa cidade de luz difusa e pedras bonitas, e cheirar-me a café e ser um impulso irresistível, pensar que o café sabia muito melhor assim, sem horários, sem ser bebido á pressa, saboreando e vendo a azafama de outra cidade diferente e no entanto tão igual ás outras.
Lembro-me ainda de dar um primeiro beijo e olhar apenas para um botão que estava em risco de cair, naquela manga que vestia aquele braço que se agarrava a mim.
Coisas em que reparo que nem vêm a propósito de nada…

Comentários

Fernando Samuel disse…
... ou que vêm muito a propósito... de tudo...

Um beijo amigo.
Rei da Lã disse…
A propósito disso...
A senhora não me empresta 5 euros para a carcaça?

Bom fim de semana
Anónimo disse…
Ana

Mais uma delicia!
Direi que todas estas coisas vêm muito a propósito de todas as coisas que reparamos e não damos conta.
Afinal coisas importantes.

Beijos

Zé Manuel
Anónimo disse…
Lindo como sempre!
Serão as histórias ou a forma como as contas?
São histórias lindas e bem contadas, com boa música em fundo.

Abraços da Lagartinha da Alhos Vedros
Anónimo disse…
Os nossos pensamentos voam quando estamos absorvidos por algo, e "agarram" pequenos nada que no fundo de pequenos nada tem...

;) beijinho
Anónimo disse…
são os pormenores
sem significado aparente,
que inconscientemente
nos fazem sonhar e voar umas vezes,
outras, arranca-nos do sonho
e devolvem-nos ao mundo
que às vezes não queremos ter...!

Magistralmente bem escrito o teu texto, melódico,ternurento, intimista....

Beijos

Ausenda
Anónimo disse…
como tenho andado ocupado e sem tempo para te visitar deixo uma piada acabadinha de chegar e que se enquadra muito bem no teu blog.

'Melhor da Semana'
- A senhora aceita um uisque?
- Não posso. Faz-me mal às pernas...
- As suas pernas incham?
- Não. Abrem-se...

fina??!! é não é?

hoje nem assino, nem digo mais nada, para poderes responder com valentia.

beijos & tortas
Diogo disse…
Something in the way she moves, do Abbey Road dos Beatles, o primeiro álbum que eu gravei na minha vida (tinha 13 anos). Tantas recordações...

Beijo
PDuarte disse…
eu lembro-me de quase tudo.
já só não me lembro daquilo que me esqueci.
mas também eram coisas sem importancia.
assim como sem importancia são as coisas de que me lembro.
importante mesmo é irmo-nos lembrando e esquecendo.
bom fim de semana amiga.
Anónimo disse…
Nada vem a propósito de nada, Ana. Há sempre um sentido nas coisas e a maneira como as expressa nos seus textos deixa sempre marcas cá dentro.
Eu sei que "Isto tem dias" mas, a verdade é que aqui são sempre dias bons.
Ana Camarra disse…
Fernando Samuel

Pois, por vezes vêm a propósito.

Rei da Lã

5 Euros arranja-se mas anda a comprar a carcaça muito cara.

Zé Manuel

Mas vamos dando conta!


Lagartinha

Ainda bem que gostas:)


Korrosiva

A vida é feita de pequenos nadas, diz a canção.

Ausenda

Outras vezes, servem só para nos afastar um pouco desse mundo…

Meu menino

Enquadra-se no meu blogue?!
Amanhã pagas essa, temos de lanchar já que vou estar perto da porta, depois ligo!

Diogo

Adoro esta música! :)
È uma daquelas que qualquer mulher gosta que lhe cantem!

Pduarte

As coisa têm a importância que lhes damos, não é amigo?


Carlos Barbosa de Oliveira

Um querido! Eu escrevo para descarregar, expurgar, descontrair, escrevo como penso.
Hoje não tem sido um grande dia, mas estes mimos deixam-me mais confortada.

Beijos
samuel disse…
E quando é o "nada" que mais vem a propósito?

Abreijos
Ana Camarra disse…
Samuel

Quando é, é!
è quando me dá para escrever estas coisas...

beijos
anad disse…
Então desististe de me ir visitar. sinto a tua falta. Gostei do texto. és muito orgânica a escrever o que te vai na alma.
Bom fim de semana
Anad
Ana Camarra disse…
anad

Tenho te descurado, tenho, desculpa.
Vou corrigir.

Beijos
LuisPVLopes disse…
Pois, lamento ter de ser redundante neste comentário:
A vida é feita de pequenos nadas!

Xôxos

Ouss
Zorze disse…
Ana,

A isso se chama "estar atenta".

Achei brilhante e de uma beleza plástica estes propósitos de nada.

Também eu tive numa maca do mesmo hospital, quando uma pedrita me saiu do rim e que queria sair à força. Eu não olhei para as lâmpadas, olhava para as paredes e também tentei estabelecer padrões.

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
Sensei- Pois é!

Zorze-Temos de ter esses pontos de fuga...

Beijos