O homem que voa

Quadro de Walton Ford

Conforme os horários há rostos que se tornam familiares e rostos eventuais, ao principio eu era um rosto eventual, e os habituais olhavam de outra forma, agora sei o nome de alguns, a profissão de outros, conheço algumas das crianças e passei a fazer parte dos habituais.
Cumprimentam com bom dia ou boa tarde, com um sorriso, um aceno por vezes imperceptível, fazem comentários “Foi à praia! Fica logo queimadinha!”, “A semana passada esteve um tempo muito estranho, lembra-se de quarta-feira?”, “Esta menina sabe que faz o mesmo horário!”, “Então as férias? Espero que tenha guardado uns diazinhos porque isto não é Verão!”.
Três paragens antes de eu sair ou três paragens depois de eu entrar, entra o homem, tem cabelos brancos, rugas, uma pasta de cabedal réplica das “antigas”, com chuva botas de cowboy, agora mocassins, uma testa com abertas, os phones, e faz um ligeiro aceno de reconhecimento, cede sempre o lugar a alguém mais velho, a uma grávida, a alguém com uma criança ao colo, de resto parece sempre tão absorto pela viagem como eu, e quando nos deparamos com pequenas coisas, uma fachada de azulejos, um medalhão noutra fachada, as sardinheiras em flor sorrimos, por vezes acabamos por tropeçar no sorriso um do outro.
Suponho pelo ar geral que era adolescente ou pelo menos jovem quando nasci, a única vez que se dirigiu a mim foi por “menina” (sente-se a menina que vai carregada), tem sempre umas camisas fantásticas!
Acho que reparei quando o vi de camisa preta que parecia sarapintada de bolas, afinal eram ovnis, estilizados, brancos, uma azul com penas num padrão branco, fizeram-me passar a reparar a fantástica coleção de camisas.
Há essas duas, há uma que podia ser uma espécie de um V mais aberto, mas decidi que são gaivotas, há uma de padrão quase oriental, embora de tons discretos, beije e branco, que são nuvens e aquela espécie de sinal que se desenha quando se quer representar o vento.
E há a de hoje, uma camisa branca, salpicada de colibris coloridos, fixei a camisa, descobri que com os colibris, convivem sobre o tecidos araras azuis, espantosamente do mesmo tamanho.
Ele continuou a ver o mundo pelo vidro, com os phones e um murmúrio de acompanhar a música, eu fiquei fascinada com colibris e araras num padrão invulgar, fui apanhada, devo ter corado como uma criança que faz asneira, o homem olhou a camisa, talvez a pensar que tivesse um nódoa, um botão aberto, lançou-me um olhar de espanto, mas o Gabriel, gritou “piu-pius…piu-pius”, eu sorri e acho que o homem percebeu que o meu fascínio é igual ao do Gabriel que tem vindo devagar a dizer palavras e que já tira a chucha para dizer “Olá”.
Não sei se é empregado de escritório, professor, contabilista, sei que arruma canções como eu arrumo palavras, hoje também deu para ouvir o que ouvia, reconheci a voz de um dos “homens da minha vida” (Peter Gabriel nunca saberá desta paixoneta), e foi um instante até reconhecer Génesis, versão muito antiga “A Place to call my own”, “Um lugar que chame meu”.
O homem que voa saiu, com colibris e araras, embalado na música, primeiro disse “Então boa tarde!” eu respondi “Boa tarde” e ele saiu a voar num adejar de asas ao vento, para um sítio que chame seu.
https://www.youtube.com/watch?v=K37YMa3jgSc

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