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Foto de Carlos Matos |
Ainda há pouco dormias, a mesma
posição de sempre o braço meio dobrado sobre a cabeça como o pescoço de um
cisne ou gesto de bailarina, levantei-me devagar, fiz para não tropeçar, o
corpo agora tem exigências diferentes, tenho de me levantar senão dói, no
espelho não me reconheço!
Onde tinha uma cabeleira farta há
uns fios brancos fininhos, a minha cara escorregou, o nariz parece-me enorme e
tenho dobras no rosto como um pergaminho seco, não me reconheço, mas faço a
rotina da higiene, diferente do que era, é tudo mais devagar e arquejo com
peças de realejo soltas, lembro-me de acordar em cima da hora e despachar-me
num instante.
Comer, pegar na sacola, vestir o
bibe e correr para a escola a ver-te de entrar noutra porta de tranças, tu
fingias que não me vias e eu também.
Depois deixei mesmo de te ver,
continuava a despachar-me num instante, fosse para pegar na sacola já com
calças compridas, correr para o eléctrico, fosse para jogar com amigos, para ir
ao cinema, para o primeiro emprego, sempre rápido, até ao dia em que te vi
outra vez.
No dia onde te vi outra vez não
tinhas tranças, nem bibe, tinhas um vestido leve de verão e o cabelo como uma
estrela de cinema, os lábios cheios e os braços esbeltos, como um pescoço de um
cisne, pedi para me apresentarem, sorriste e fizeste a pergunta “Não te lembras
de mim?”
Fiquei assustado, depois vi a
menina de tranças, passei a demorar mais tempo com certas rotinas, passou a ser
imprescindível o risco direito, a barba bem feita, os sapatos brilhantes e
nunca mais me esqueci de ti.
Não me esqueci de ti quando te vi
vestida de noiva com um penteado alto mas a caminhar para mim com passo de
bailarina, nem quando fizemos de uma casa lar e quando o teu corpo se modificou
com os nossos filhos a crescer lá dentro, não me esqueci de ti quando me pedias
para trazer aqueles pasteis ao pé do meu emprego, nem me esqueci do teu
aniversário, do nosso, dos nossos filhos, depois dos netos, a sério nunca me
esqueci.
Depois ficámos os dois, e tu
começaste a esfumar-te, o lume que deixavas aceso, a vontade de falares com a
tua mãe já a descansar no jazigo, coisas guardadas em sítios estranhos que ia
encontrando.
Passei a ser a tua memória, a
guiar-te no quotidiano.
A sério que não vejo o teu rosto
enrugado, nem o teu corpo diferente, nem o teu cabelo cor de algodão.
A sério que não me aborrece
lembrar-te todo o dia do nome das pessoas, dos filhos, dos netos, dar-te os
comprimidos, levar-te ao cabeleireiro pelo braço e ao jardim.
Doí-me quando olhas para mim como
um estranho, mas depois apresento-me e pergunto “Não te lembras de mim?”,
dentro de ti acorda a rapariga, a menina ou a mulher e sorris outra vez.
E eu também.
Agora sei que estás acordada, mas
de olhos cerrados porque quando acordas demoras um pouco a perceber onde estás,
quem és, nem sempre é preciso perguntar “Não te lembras de mim?”
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