Canto eu, baixinho




O rádio do carro deixou de tocar outra vez, é temperamental e de tempos a tempos desliga-se e faz uma espécie de retiro espiritual, deixando-me apenas com o som da mecânica e clic de certos comandos, como os limpa para brisas que se afadigam a limpar as gotas de água que caem sobre os vidros, sobre a estrada, parece que dizem adeus a alguém ou que querem parar a chuva com aquele movimento frenético, quase que lhes digo que não vale a pena, mas podiam ressentir-se como o rádio, eu ainda vou cantarolando baixinho, mas não me dá jeito nenhum limpar a chuva ao mesmo tempo, até porque ainda me dói o braço, não se sabe se pelas longas horas a tocar teclados, de computador, se por embirração do meu organismo que recomeçou a pressionar nervos e a fazer avarias, é normal, rebela-se de eu esforçar mais do que devia (O médico bem resmunga num tom que nem ele acredita “Ana, o descanso é fundamental, veja lá o que faz!”).
Dou duas três voltas aos mesmos quarteirões, já cheios de arcadas com motivos de estrelas, prontas a serem acesas na altura marcada, em vão, falta o último recurso o estacionamento igual, de um Centro Comercial, replica e génio de todos os outros, com as mesmas lojas, as mesmas cores e os mesmos cheiros e corro, para chegar a horas, como o coelho da história, entro encaro alguém que não via à muito tempo, com olhar parado e movimentos lentos, lembro-me do seu entusiasmo contagiante a falar de Pessoa, dos verbos em Francês, de me entusiasmar a ler o mais possível na língua original.
Encaro os seu olhos azuis pequeninos, acaricio a face “Sabe quem sou?”, fixa-me, “Sim, és a Ana!”, tem uma espécie de meio sorriso, e antes de entrar para o gabinete onde vão ralhar comigo, aplicar ultra sons, dizer que eu abuso muito, que devia de estar nem que fosse dois dias a descansar, enquanto aplicam agulhas com uma ciência milenar que vão desligando a cada picadela terminais de dor, penso naquela mulher que era vibrante e combativa e se encontra reduzida àquele meio sorriso, àqueles gestos lentos, não corro para o carro, primeiro convido um amigo para um café que bebo com calma e com uma conversa tranquila, vou devagar para o carro, não me irrita a lentidão do carro da frente, olho para o rádio mudo, penso que vou desprezar nem que seja só hoje o relógio, talvez o rádio faça as pazes comigo amanhã, entretanto, mesmo com um nó na garganta, canto eu baixinho…

Comentários

duarte disse…
canta amiga... que de longe e de perto acompanhar-te-emos! e não tenhas pressa, faz tudo com o ritmo que mais te convem. o rádio? voltará a tocar , e então sim cantarás... mas mais alto ainda! a chuva é sempre passageira, traz sempre outros tons. para nos alegrar temos muito azul em mar e céu...basta parar , cerrar os olhos e recordar o que volta sempre.
abraço do vale(que não esquece, apenas demora)
Anónimo disse…
Vai devagar aninha, vais ver que chegas longe e com mais forças.

Já não falo dos textos, peço e repeço para pensares numa compilação, mesmo pequenina,mas qual quê, não ligas!

Um beijinho

Lagatinha de Alhos Vedros
Diogo disse…
Há profissões que quase nos destroem (entre algumas alegrias).

Beijo
Fernando Samuel disse…
Há encontros assim...

um beijo.
casadegentedoida disse…
Realmente um rádio no carro faz falta, mesmo muita falta. Se não fosse ele como poderia eu fazer 500 ou 700 kms duma assentada? Este meu amigo, de longa data, que me acompanha a 15 anos, já cantou mais musicas e cassetes que sei lá o que. Sempre foi um grande companheiro até nos percursos mais curtos. Acho que o deves arranjar, não deve ser nada de grave, pelo que dizes é algum mau contacto, sempre ajuda a aliviar o stress do dia a dia.
Bjs.
samuel disse…
Cantar pode não resolver nada... mas quem sabe?...

Abreijo.
salvoconduto disse…
Sem rádio ou leitor no carro é que não me revejo, ele é o barulho do motor, ele são os plásticos da porta, ele é aquele embrulho aos tombos na mala, decididamente não.

Abreijos.
Zorze disse…
Ana,

Essas ondas rádio precisam de um sopro.

Beijos,
Zorze