Gato gordo e palerma



Está um dia cinzento e chuvoso e nos dias cinzentos encolho-me como um gato gordo e palerma, só como os gatos sabem ser, embora mesmo os gatos gordos e palermas tenham sempre prontos dentro de si um tigre, todo bigodes, pelos eriçados e garras, assim como um bicho dentro de outro.
Acho que funciono a energia térmica solar e preciso disso para funcionar, estes primeiros dias deixam-me assim com o cheiro de terra molhada, com a noite a chegar mais cedo, com outras coisas a passar pela cabeça, umas boas outras nem por isso, até ao meio do dia a coisa funciona, trabalhei, cozinhei, depois fico assim outonal, a pensar que amanhã é dia de batente e por estes dias o batente é também campanha, limpar ramela ainda não é bem dia ver uma data de pessoas que sacodem o sono com a andar decidido para dentro do barco, que os vão levar para a outra margem, estender um programa, perguntar sempre “Bom dia! Posso oferecer-lhe…”, uns agarram sem olhar, outros agradecem, há uns que recusam, uns educadamente, outros nem por isso.
Eu fico a olhar e a pensar quantas histórias caminham ali, os amores perdidos, a auxiliar de acção médica que sonhou salvar vidas como médica e acabou com um titulo maior e que de vez em quando fecha os olhos no meio do cheiro dos desinfectantes e por um breve instante quase se convence que conseguiu, o homem cansado que sonhava ver as grandes obras de arte em tantos Museus, que as conhece de cor pelos livros, mas que fica ali todo o dia numa portaria a dizer “Bom Dia Sr. Doutor!” ou “A sua identificação, por favor”, quando não passa ninguém e os telefones não gritam nem acendem luzes ele vê os catálogos escondidos, as esculturas de Rodin, os amarelos de Van Gogh, as ninfas rechonchudas de Rubens, assim esquece-se um pouco do filho que entra e sai de casa ciclicamente, que nos intervalos arruma carros em troca de moedas e troca qualquer coisa por uma substância que injecta dentro de si, que o mata aos poucos e mata o sonho daquele homem, que o mais longe que foi, foi a Badajoz, de Excursão onde comprou latas de pêssego, chocolates e outras coisas iguais ás de cá. De vez em quando mete um dia de folga, sem a mulher saber, veste o melhor fato, leva a sanduíche numa pasta, vai direito ás Janelas Verdes ou ao museu de Arte Antiga da Fundação Gulbenkian, absorve tudo, quando sai sente-se mais homem, embora continue a sonhar com aqueles sítios, Prado, Orsay, Louvre, Hermitage, nem pode falar nisso, a mulher com quem casou pelo sorriso fresco e a cintura fina, ela própria uma ninfa, agora só rugas, encarquilha-se no sofá, com a renda na mão, a bata ás flores, suspensa nas agruras das novelas.
Desculpem mas estes primeiros dias chuvosos e cinzentos deixam-me assim, encolhida como um gato, gordo e palerma.

Comentários

salvo disse…
Surpreendes-me com o termo gata gorda e palerma. Gatas, gordas ou margas encontrei muitas, nenhuma palerma. Já palermas encontrei muitos e muitas, nada a ver com o animal em apreciação. Gordos muitos mais. Sinais dos tempos.

E olha que no outono ainda há dias belíssimos, tudo depende da forma como acordamos ou de quem não encontramos durante o dia, aqueles que no-lo estragam, faça sol ou faça chuva.

Abrejos.
Fernando Samuel disse…
Se é assim, então vivam os dias cinzentos e chuvosos...

Um beijo.
Anónimo disse…
Adoro gatos, gordos ou magros, pretos brancos, amarelos ou pardos.
Adoro dias cinzentos, musiquinha boa, marmelos e textos teus!
Detesto palermas, gordos ou magros sejam cor de laranja, ou de qualquer dos tons rosados,detesto os xicos espertos com ar de padrecos e os betos com cheiro a mofo.

Abraços

lagartinha de Alhos Vedros
Diogo disse…
Detesto o Outono e o Inverno. Também eu funciono a luz e calor. Saber que só daqui a seis meses vou poder voltar a andar de camisa e a mergulhar (sem fato) no mar, deixa-me nostálgico. Se ganhasse o Euromilhões comprava uma casa no sul de Espanha e outra no hemisfério sul. Era seis meses cá e seis meses lá – sem Invernos.

Beijo
Zorze disse…
Ana,

Sabes que gosto muito de gatos, e de palermas não têm nada.
Aliás vêm a "outra dimensão".

Quanto ao dia vejo que não foi de feição, o dia cinzento ajudou a pintar todo um quadro assim.
Personificaste existências robóticas, vazias, desprovidas de tanta coisa. Até de sonhos de outrora, alimentados pela a amargura e a depressão, nem que seja, para a enganar a fome de sonhar.

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
Salvo

Nem os gatos gordos são palermas, por isso falo no outro bicho dentro deles.
Há dias bons no Outono eu que ando como uma corda de violino, muito esticada.

Fernando Samuel

Sol, sol, sol.

Lagartinha

Também gosto de gatos.
Também não gosto desses bichos que falas.

Diogo

A minha não precisava de ser no Sul de Espanha, podia ser no Sul de cá.
Quanto ao resto podiamos ser vizinhos no hemisfério Sul, trocavamos raminhos de salsa e bebiamos daiquiris ao por do sol, junto ao mar.

Zorze

Isto tem dias...


Beijos
Akhen disse…
Sabes Ana, ontem com a chuva e a cor cinzenta do dia, sentia-me mais palerma que gato gordo, até porque não sou gordo e sou palerma.
Mas fiquei, sentado, não sei quanto tempo, vendo e ouvindo a chuva cair.
Passavam as ideias pela cabeça, mas a preguiça era tanta que não apetecia fazer nada.
Mas os "gatos gordos" podem ficar olhando a chuva sem fazer nada...nós....apenas somos palermas e temos que dar ao côco.

PAZ e LUZ na tua casa
Ana Camarra disse…
Akhen

Custa-me a acreditar que sejas palerma, deves ter dias, como eu.

beijos