Organza


Não sei que idade a minha tia teria, qualquer coisa entre os quinze e os vinte, havia um baile, local apetecível de convívio, namorico para os jovens da sua época.
Importante o traje, neste caso a minha tia ansiava por vestido novo de organza, cor de rosa com pintinhas brancas, talhado pela Maria costureira, no entanto entre os afazeres da Maria e os da minha avó, o vestido estava apenas talhado e alinhavado, não fez mal, a minha inventiva e prática avó resolveu tudo, o vestido estava cortado, alinhavado, aqueceu-se o ferro e foi vincado, depois de vestido foram ajustados os alinhavos e a minha tia brilhou no baile, rodopiando nos braços do namorado de sempre, com o seu vestido de organza, o cabelo castanho mel e olhos esverdeados.
Hoje o corpo da minha tia, o que restava, foi cremado, ontem centenas de pessoas quiseram dizer-lhe adeus, entre elas o filho da Maria, apareceram flores suas homónimas, entregaram ao seu namorado de sempre, uma espécie de marmita, bordeaux, cheia de um pozinho branco, brilhante, no meio daquele pó estará o vestido de organza alinhavado, pelo menos a recordação do toque da organza na pele, estará o toque do seu namorado à mais de meio século que lhe fez esta ultima vontade, o toque dos seus meninos recém nascidos, hoje homens e pais que estiveram ali, a fingir que eram crescidos, o riso dos netos, o sorriso de todos aqueles amigos queridos que lhe quiseram dizer adeus, todos os Natais, aniversários, o toque dos meus filhos recém nascidos que assumia da mesma forma como se fossem netos, o cheiro do café que me ensinou a gostar, todas as brincadeiras da infância, todas as lutas que travou, o som do mar, como o que existe numa concha, a saudade imensa que já temos dela, todo o carinho que nos deu.

Comentários

NI disse…
Apesar das circunstâncias, que lamento, tenho que dizer que o texto está excepcional.

Seria essa marca que gostaria de deixar quando tiver que ir.
CPrice disse…
(abraço)

e sim, faço minhas as letras de NI.
duarte disse…
UMA BELA MULHER FICOU GRAVADA NA TUA NADA MENOS BELA MEMÓRIA...E CONSCIENCIA.
ABRAÇO GRANDE ,E, DAQUI MANDO MUITA FORÇA E CARINHO.
UM DOS MUITOS AMIGOS QUE TENS,
duarte
salvoconduto disse…
O teu texto é uma bele homenagem à tua tia.

Abreijo.
Anónimo disse…
Que melhor homenagem poderiam fazer á tua tia?
Lindo texto!
Acabou o sofrimento.
Recordo-a, sempre tão cuidada, á hora de almoço no grande refeitório da Alameda e claro acompanhada pelo seu "NAMORADO" de sempre.

para ti aninha

um beijinho da Lagartinha de Alhos Vedros
Zorze disse…
Ana,

Mais um ciclo que se encerrou numa existência que se entende como eterna.

Beijos,
Zorze
Fernando Samuel disse…
Um beijo grande, cheio de solidariedade.
Soontir Fel disse…
Ana, sem te conhecer pessoalmente, foi fácil ver pelos teus olhos em palvars tão bem talhadas, uma vida resumida ao essencial, do auge ao fim(?)...
Que ela o possa usar, ao belo vestido de organza, naquele lugar onde as recordações dos que deixamos nos guardam, para sempre rodopiando, de sorriso nos lábios e magia nos pés...
Beijinhos.
samuel disse…
Texto suave...

Beijo.
Akhen disse…
Ana

Da mesma forma que entendo que a relação na humanidade será aquela que sonho para o mundo que eu acredito um dia existirá; do mesmo modo acredito que a tua tia estará esperando o seu namorado de sempre, numa outra dimensão, com o vestido de organza, para começarem um novo ciclo.
Este ciclo dela, como disse o Zorze, terminou.
Ana, acompanho-te neste momento dificil.
PAZ e LUZ no teu caminho.
LBJ disse…
Os meus sentidos Pêsames...

Que descanse em paz.

Um Beijo
Ana Camarra disse…
A todos

Obrigado pelo carinho

beijo