Choupo cheio de pardais...



Os funerais tem a particularidade de juntar pessoas, de repente todos paramos todos os compromissos inadiáveis para aquilo.
Juntamo-nos assim, uns apenas de uma frase circunstancial, por dever quase institucional, outros os próximos, os verdadeiros de outra forma, num abraço mudo sem palavras, porque não há palavras que encham os vazios, e depois passado um pouco as coisas fluem, no meio do tempo que escorre entre as mãos temos aquele pedaço, revemos os amigos de infância, os primos distantes. Há quem traga fotos antigas de grupos felizes, sentados numa praia, todos com um sorriso jovem e o futuro á espera, chamam-se “Olha para ti aqui!”, faz-se a contabilidade dos que já não estão, apesar de tudo consegue-se ouvir a vida a gritar num choupo torcido, carregado de pardais que chilreiam, consegue-se olhar para mais uma coroa de flores que chega e sorrimos pela graça da coroa ter girassóis ou espigas, de vez em quando conseguimos sorrir, de vez em quando sentimo-nos muito vazios, muito sós, apesar de estarem ali muitas pessoas que genuinamente nos querem acompanhar, de vez em quando achamos que é tudo mentira, um sonho mau, nada mais.

O culto dos mortos, os rituais fazem-me impressão, a minha avó nunca quis que vestissem luto por ela e em plena década de sessenta não vestiu luto pelo marido, uma época em que uma viúva das meias ao lenço era suposto usar um luto carregado, o jargão mil vezes repetido de que termos de estimar as pessoas em vida é verdadeiro, tento faze-lo o mais possível, mas respeito os mortos, as memórias, os ensinamentos, as histórias, ora trágicas ora cómicas, só assim se percebe que carregue comigo esta imensa família, já com muitas baixas em consumidores de oxigénio.
Custa-me a acreditar numa vida, uma existência após a morte, para além de me lembrar deles, sentir a sua falta e honrar a sua memória.
Detesto cemitérios, as campas cheias de ferragens, os corações de mármore, as fotografias de esmalte com uma imagem falsa de alguém de olhos quase sempre vazios, jarras compradas na loja do chinês com tristes e empoeiradas flores artificias, as fotos e as flores são uma espécie de artificio de vida, de uma coisa que não é, a negação de si própria, as flores são a continuidade de vida das plantas, o sitio onde se guardam as sementes, sendo artificiais não são nada.

Comentários

Zorze disse…
Ana,

"Custa-me a acreditar numa vida, uma existência após a morte, ...", Ana não é preciso acreditar, nós somos essência e somatório de muitas vidas.

Um dia vais ver, acreditas ?
Se assim fosse, que sentido faria tudo isto ?
Construir uma vida, para terminar tudo pura e simplesmente ?

Há mais sentido nisto tudo, mais do julgamos e o acaso não existe, mesmo que no presente não vislumbremos o sentido naquilo que parece aleatório e sem sentido.

Beijos,
Zorze
Akhen disse…
Ana,
Tudo isto por que tu passaste, a mim, deixa-me um sabor amargo na boca.
Tudo o que se processa para cumprir o ritual do culto dos mortos, é algo em que não penso enquanto esse tempo passa, porque se penso, fala-se e se se fala
tudo vem à memória.
Deixo para mais tarde a falta que se sente.
Num dos meus blogues eu tinha este meu pensamento:
"Quando eu morrer, não quero que me chorem porque a vida continua.
Quero que pensem, somente, que foi um "Vou ali já volto".
Depois, porque demoro, digam apenas "Aquele é sempre o mesmo, perdeu-se no caminho de volta"
Quanto ao custar-te acreditar numa vida, uma existência após a morte, repara, se fosse só isto, este ingrato mundo. Se os valores que cultivamos fossem apenas reflexo da nossa condição humana, então digo-te, Ana, eu estava-me nas tintas para esses mesmos valores.
Também te digo que não será aquilo que nos vendem.
Por isso, deixem-me ser utópico e continuar a pensar que, de algum modo, Eles, os que já partiram, estão no mundo que nós pensamos e no qual todos os valores que cultivamos ali são observados.
Ana no meu blogue lê "A fala do HOMEM para o homem".
PAZ e LUZ no teu caminho
NI disse…
Bom, eu também não acredito na vida após a morte.

Sinto saudades de todos aqueles que, de uma forma ou outra, foram importantes na minha vida. Já perdi praticamente toda a minha família. Contudo, na minha família nunca se praticou o culto dos mortos.

Os valores que sempre defendemos obrigou-nos, sempre, a praticar o culto dos vivos e a preservar o que de melhor deixaram os que partiram...



Mas, acima de tudo, tento reter tud
Anónimo disse…
Um beijo

Lagartinha de Alhos Vedrs
Diogo disse…
Há três formas de sobreviver à morte física:

a) Pela obra genética através da filharada.

b) Pelas obras valerosas, artística, cientifica, humanitária ou outra.

c) Pela grande desgraça imposta a outros (Ex: Roosevelt, Churchill, Estaline ou Hitler).

Também detesto cemitérios.

Beijo
Fernando Samuel disse…
A nossa memória é riquíssima...
Belo texto.

Um beijo.
Ana Camarra disse…
Zorze

A vida mesmo acreditando que é só esta faz todo sentido, para mim.

Akhen

Continua a custar acreditar.
Acho que tud o que se faz na vida deixa marcas ao nosso redor e isso faz um sentido brutal.

Ni

Exactamente como eu encaro a coisa.

Lagartinha

:)

Diogo

Pois essas três existem.

Fernando Samuel

Pois é!

Beijos
LBJ disse…
Também eu acredito que a vida é esta que aqui conseguirmos viver.

Cultivamos a memória aos mortos que nos foram queridos, pela lembrança repentina que temos deles e não por artifícios.

Beijos Vizinha
Ana Camarra disse…
LBJ

Exactamente!

Beijos Vizinho