Como a vida anda sempre a repetir-se, num ciclo interminavél onde passamos pelas coisas muitas vezes, trago aqui um texto, que coloquei aqui em Março.
Porquê?
Porque me sinto assim tal e qual.
Naquela altura era Março, o vento fustigava as janelas, cheirava a chuva, os dias já ameaçavam, timidamente crescer. Agora cheira a chuva e os dias ameaçam diminuir. Eu procurava coisas que sabia ter guardado e não as encontrava, hoje estou na mesma, não encontro o que procuro, encontro outras coisas.
A minha especialidade é perder coisas, coisas variadas, tanto podem ser chaves, como cartões, documentos, brincos, exames médicos, agulhas de tricot, chaves, pincéis, colares, fotografias, enfim coisas. Por vezes não as perco, só as arrumo de forma a nunca mais me lembrar onde arrumei, sei que as arrumei muito bem com o comentário de “…fica aqui para saber onde está”, invariavelmente nunca mais tenho consciência do local onde as arrumei e faço a chamada pesquisa louca e revisto: todos os bolsos dos casacos, todas as malas, todos os sacos de praia, todas as gavetas, todas as bolsas, todas as caixas e baús… Invariavelmente, também, encontro outras coisas, não aquelas que procurava inicialmente e só o facto das encontrar faz-me sentir bem com o facto de nunca as ter deitado fora: fotografias de crianças que já são adultos; recados trocados no secundário escritos em pedaços de caderno escolar pela a mesma amiga que me ligou hoje de manhã a queixar-se da vida e a saber se estou bem; orlas de jornais, aquele espaço em branco onde acabam as letras mas ainda não acabou o jornal, cheias de desenhos de barcos feitos a esferográfica, barcos desenhados pelo meu pai, barcos de perfil e com cortes transversais e medidas escritas entre parêntesis, o meu pai que nasceu junto ao Tejo e mal sabia nadar e que adorava barcos, em cada cidade visitávamos as docas, os portos com o odor do mar e os gritos das gaivotas como pano de fundo aquele passeio; encontrei ainda a lembrança dos pés da minha irmã acabada de nascer, pequeninos com pequenos rolos de lã entre os dedos, farrapos das botinhas que eu lhe descalcei para examinar aquela pequena amostra de pés; e os cheiros, do meu tio Mário a Cigarrilhas e Brut, da minha avó a Colónia 4711, do Verão a figos maduros que só combinam com o som atordoante de mil cigarras, da Bolema de maçã que a minha mãe faz, que cheira a pão fresco, canela e Outono; e o sorriso cúmplice que foi trocado, depois de fazer amor, que tinha consigo a certeza que iria ser por muitos anos, ainda dura; ainda o suspiro de alivio em uníssono que eu e o meu filho mais velho emitimos da primeira vez que o aninhei ao meu colo depois de três dias de trabalho de parto; o cheiro a bebé de todos os bebés que já peguei ao colo; a cumplicidade da infância com os meus primos, todos de joelhos esfolados pintados com mercúrio, a devorar todos os frutos de um medronheiro ao sol, e o sabor, também encontrei o sabor, quase sensual, da polpa quente, macia e incandescente do medronho; o beliscão, é verdade o beliscão da minha prima Aurora que se fazia acompanhar de uma fatia de pão com geleia de marmelo, já não há, ela morreu com 90 anos e tratou-me sempre como se eu tivesse 5 e levou o sabor daquela geleia; o olhar trocista do meu filho mais novo da primeira vez que encarou comigo, um olhar de adulto, destemido e avaliador, como se já percebesse o mundo; bilhetes de concertos e filmes que nunca mais me esqueci… Não encontrei o que procurava, encontrei muito mais…
Comentários
Um beijo.
Ás vezes procuramos as coisas com tanta anciedade, que estamos a olhar para elas, e não as vemos, e tambem encontramos coisas que em tempos procurámos, e dizemos :-olha o que eu corri á procura disto, afinal está aquí.
Aí mulher tu vais lembrar-te de cada coisa!
Bjos
Obrigado, mas sentia-me no mesmo ponto...
José (Poesia)
Coisas que me passam pela ginja.
Mugabe
O brut usavas, o 4711 oferecias, sempre um bom presente, perfumes...
beijos
Ontem passei pelo Barreiro,fui a Arroteias (!) será assim!.Não pude deixar de pensar em ti e destas historias do antigamente.
Arroteias é Alhos Vedros, Concelho da Moita, logo aqui ao lado.
Já agora informo que Alhos Vedros era a sede de Concelho antes do Foral do Barreiro, concedido por D. Manuel.
Supostamente existe, existiu, um tunel que liga a Igreja de Alhos Vedros, o Convento da Maqdre de Deus da Verderena, no Barreiro, passando pelo Castelo de Palmela e terminando no Convento da Arrabida.
Uma lenda que nunca foi provada, mas é mais um dado.
Beijos
e efectivmente encontrando.
Mais uma inspiração bonita este post.
beijos
ausenda
O passado não tem que ser nostálgico, mas sim um cantinho, só nosso, onde por vezes temos que nos recolher, ainda que por pouco tempo, o tempo de o escrevermos e, sentirmo-nos bem, lembrar a sentir cheiros e odores, entremeados com sabores e, pessoas queridas que sem tempo, vivem em nós para todo o sempre!... Por momentos, ainda que breves, estamos com elas e elas connosco, somos felizes e encostamos a cabeça com um suspiro e um coração cheio, ainda, que por momentos.
Xôxos
Ouss
Deve ser uma sensação indescritível. Do meu, lembro-me de o ver de olhos azuis bebé abertos a passar com a mãe na maca da maternidade a caminho do quarto. Nunca mais esqueci esta imagem.
Ludo- A minha teoria é que apesar de tudo a vida, mesmo com amarguras, tem sempre aspectos positivos, é só procurar.
Carlos Barbosa Oliveira – E é bom, não é?
Sensei – È isso são as minhas memórias, que fazem de mim quem sou.
Diogo – É uma sensação única, não tenhas dúvidas, eu sempre tive inveja de não ter a facilidade, que vocês homens possuem em aliviar a bexiga em qualquer lado, mas já passei por duas vezes pela sensação de gerar uma vida, isso é só nosso.
Beijos
Kisses
Posso tardar em vir cá, mas não me esqueço...
Abreijo.
Não é facil, nem sempre fui assim,aliás por educação só olharia quase para o lado negro, mas não pode ser, a um nivél mesmo que aparentemente pequeno, minimo, temos de nos sentir gratificados, felizes.
Quando olhamos para trás podemos nos lembrar do bom ou do mau, podemos até lembrar as duas coisas, lembrar do bom para nos aquecer, do mau para sabermos que já conseguimos ultrapassar muitas barreiras e cá estamos.
Ainda cá estamos, estamos vivos, inteiros, com capacidades e capazes de sermos felizes.
Não é?
beijo
E és muito benvindo amigo, muito mesmo.
beijos, abreijos e abraços
Abreijos
Beijos,
Zorze
Zorze-Tudo o que escrevo, acredita é sentido, pode não ter muito sentido, mas é sentido!
beijos
Muito bom.
M.
Pois é, é uma ligação muito afectiva.
beijos