A Memória das Tabernas


Quando eu era miúda, o Barreiro estava cheio de tabernas, como as outras localidades.
As tabernas eram uma instituição, para além do habitual consumidor do copo de três, penalti ou bagaço, vendia-se vinho avulso, aguardente, para preparos culinários, para acompanhar as refeições.
Qualquer miúdo entrava na taberna, de garrafa na mão para aviar meio litro de vinho para o jantar ou um quarto de vinho branco para temperar a carne.
As tabernas eram locais de convívio, depois do trabalho, ou entre reformados que batiam umas cartas ou umas peças de dominó durante tardes inteiras.
As tabernas tinham balcões de mármore e pipas embutidas nas paredes, mesas e bancos corridos ou mesas quadradas de tampo de mármore e pequenos bancos.
Algumas tinham ainda gabinetes reservados, onde se podia estar com mais privacidade, com cortinas de chita floridas.
Nalgumas juntavam se grupos de fadistas amadores e cantavam à desgarrada.
As pessoas juntavam-se ainda para ouvir rádio ou comentar o jornal.
Vendiam-se ainda nas tabernas algumas especialidades gastronómicas, conforme a origem do taberneiro, quando este ia “à terra” lá vinha com os enchidos, queijos, azeitonas, tudo tradicional que vendia.
Algumas forneciam almoços, que se comiam num quintal com parreiras e gatos preguiçosos, ou petiscos.
Era normal ver um tabuleiro de esmalte, cheio de sal, com ovos cozidos lá colocados.
Um frasco com biscoitos caseiros, chupas ou outras guloseimas para nós.
Bolachas “Belinhas” avulso, línguas de gato e beijinhos. Lembram-se?
Algumas vendiam ainda fruta, lâminas para a barba, fósforos e outras coisas.
Quase todas as tabernas tinham um papagaio à porta, cinzento de nome Jacob e de língua afiada.
Lembro-me particularmente do Jacob da “Arruda dos Vinhos”, Travessa Luís de Camões, ali virado para o Jardim dos Franceses, que imitava um cão a ganir sempre que descia um carro na travessa, provocando o pânico nos condutores que saiam para investigar debaixo do veiculo, ou do Jacob da Vinícola na Rua Aguiar que distinguia um certo individuo, marreco, tratando aos gritos como tal e não o fazendo a mais ninguém…
No Largo das Obras era o “Lagarto”, que ostentava um lagarto empalhado na parede, todas as noites lá eu ia pela mão do meu pai, ele bebia o café eu olhava fascinada o bicharoco na parede enquanto debicava a guloseima do dia.
Um tio meu tinha em Palhais uma Taberna/Mercearia que primava pela originalidade, não pelo estabelecimento estar divido em dois, com duas portas distintas, com as suas fitinhas penduradas e uma porta de ligação onde ele transitava para atender a clientela. A originalidade constituía em ter um coelho à solta pelo estabelecimento, coelho que bebia o vinho que pingava da pipa para a malga de barro, e depois esticava-se na soleira ao sol a dormir, levantando-se vagarosamente para beber mais um pouco…
O coelho que para mim era sempre o mesmo (era o que eu acreditava) era enorme e morria de velho.

Já quase que não há tabernas!



Comentários

Zé Ferradura disse…
Ana,

Que saudades, que saudades das belas e tradicionais tascas.

Bj
Zé Ferradura
Anónimo disse…
Alguns belos momentos, em amena cavaqueira e revoluções, muitas, passei-os em algumas tabernas no Bairro Alto. Uma dela, numa das perpendiculares ao Largo do Calhariz também tinha um papagaio, danado malcriado como as cobras.
Mário Pinto disse…
Num estudo britânico, do ano passado, estimava-se que o valor de tomar um copo por mes com um amigoéra de, se mal não recordo, 40.000 libras.
Zorze disse…
Gostei do post Ana, trazes uma visão bonita das tabernas.

Mas, não nos podemos esquecer do lado negro. Porrada da grossa, alcoolismo e batota mal gerida. Compensada em casa na tromba da mulher.

Para muitas mulheres a Taberna representa o Mal e a ginástica orçamental do dinheiro gasto pelo o marido nos copos.

Beijos,
Zorze
Anónimo disse…
Já quase que não há nada.
Eu fui "criado" a trabalhar na baixa e levava a lancheira com a marmita para a taberna onde almoçava.
Pagava 2 tostões de aquecer a comida e bebia um copo de dois branco. Tinha 12 anos e não foi por isso que me perdi.
E os petiscos? Sardinhas (petingas) fritas, carapaus de escabeche, pastéis de bacalhau, iscas…
Quando posso ainda vou até ao cantinho da Rua 1º de Dezembro, onde ainda resiste uma espécie de taberna (hoje rendida a algumas modernices) com umas bifanas "de estalo", uns escalopes panadinhos, ou umas postas de bacalhau frito, envolto em farinha e ovo.
Mas se a ASAE entrasse numa taberna à antiga, acho que ficava rendida aos petiscos e à serradura espalhada no chão e "abancava" para petiscar.
Nesse tempo Lisboa era uma aldeia...
Anónimo disse…
ai ai as tabernas,...lembro-me muito bem em miúdo em Benfica onde nasci ir muitas vezes, mandado pela minha mãe, à taberna comprar vinho, era normal. Hoje essa antiga taberna ainda existe mas é um restaurante. Eram lugares de conversa, convívio, enfim de grande sociabilidade, pode-se dizer. Mas Ana e a ginginha ??? Abraço!
Anónimo disse…
Ana
Não sei se exagero mas, em Lisboa eram ás centenas.
Eu formei-me com a 4ª classe aos 11 anos, fui trabalhar para mandeirete de cabeleireiro ganhava cem escudos por Mês, e costumava levar almoço, levavam-me 2 tostões por aquecê-lo ali numa taberna na Calçada do Duque.
Mais tardedeixei de levar almoço e almoçava nuns galegos na Rua do Cruxificço, quase sempre o almoço era Meia-Desfeita (bacalhau batatas grão e um ovo cortado salsa e cebola)o galego era o LUTCHO.
Lembro-me que mais tarde apareceram aquelas máquinas de discos, colocadas à porta onde punhamos i escudo, estavam o dia
inteiro a tocar, estava na moda as canções do Joselito. a "Campanêra".Bem vou parar senão ficamos aquí até amanhã.
Bjos
Ana Camarra disse…
Zé Ferradura – Pois eram diferentes.

Salvoconduto – Pois os papagaios eram uma imagem de marca.

CRN – Um negócio em ascensão

Zorze – Não eram as tabernas o mal, era a miséria, a ignorância e ainda o facto das mulheres serem muito desvalorizadas, socialmente.

Opinador – Pois existiam petiscos fabulosos,

Mugabe – Pois a ginginha, eu ia a uma onde vendiam só as ginjas e toda a gente acha normal nós comprarmos cinco escudos de gingas de aguardente, no fim fazíamos a competição de atirar os caroços.


beijos
Moacy Cirne disse…
Como seridoense, nordestino e brasileiro, morando no Rio, gostei muito de sua postagem 'O fruto apetecido'. Mas o Brasil não é só a Bahia... Nem Luiz Carlos Prestes me parece o nosso revolucionário mais completo. No Balaio Porreta, mais do que no Poema/Processo, tenho procurado, indiretamente, é verdade, colocar questões políticas através de minha compreensão da arte e da poesia. Em tempo: cheguei aqui via Cantigueiro. Um abraço.
Ana Camarra disse…
José Manganão - E podes estar aqui o tempo que quiseres, que eu gosto!

Um beijo na testa
Ana Camarra disse…
moacy

Se chegou via Cantigueiro, chegos muito bem.
Seja bem vindo e volte sempre que quiser.
Nunca fui ao Brasil!
Admito que desconheço muita coisa, a minha ligação "amorosa" com o Brasil faz-se via escritires, particularmente Jorge Amado e via músicos, que tem muitos e bons.
Luis Carlos Prestes não deixa de ser um icone, não acha?
Mande o que quizer sobre a situação no Brasil.
Obrigado
Beijos
Moacy Cirne disse…
Ana, concordo com você: Prestes é um ícone da esquerda brasileira. Pessoalmente, prefiro outros nomes (provavelmente mais combativos). Mas, reconheço, trata-se de uma opinião discutível. Como outras. E grato pela visita ao Balaio. Um abraço.
Fernando Samuel disse…
Muito bela, esta peregrinação às tabernas do (nosso) passado e cheia de saudade e de ternura...

A taberna/mercearia do teu tio (tirando o coelho) era igualzinha à do meu tio...

Um beijo amigo.
Capitão Merda disse…
Bem lembrado, Ana!

Tascas é comigo...
LuisPVLopes disse…
O cheiro acre do vinho, do vinagre das pipas vazias, vinho vendido a copo, copo grosso com uma marca, copo de guerra, resistente, sempre molhado por dentro e por fora, segurado por dedos fortes pouco cuidados, dos trabalhos árduos do dia-a-dia, aquele líquido ao fim do dia tirava a sede e o sentimento de impotência da pobreza, escape de uma realidade que teimava em não ser diferente, turvavam-se as ideias, baixavam-se as defesas, a uns dava para serem os maiores amigos de todos, a outros agudizava-se-lhes a desconfiança e saltava o mau feitio que a revolta alimentara.
Dizia o Botas que beber dava de comer a 1 milhão de Portugueses, pois dava, à falta de melhor, o vinho lá ia enchendo se não a barriga, a alma e enquanto se dorme não se sente tanto a fome, nem a ralha da mulher que da revolta lhe ficou o mau feitio, tão pouco o choro dos filhos com fome, todos cansados se deitam no exíguo espaço, todos descansam o seu orgulho em ser Portugueses, descendentes de Camões e da raça Lusitana, mas de pouco retorno válido essas histórias tinham, apenas a bota do regime lhes era contemporânea, regime que hoje alguns almejam, embora as tabernas de hoje sejam de outra índole.

Bjos

Ouss
Divulgação

Onde estavam os adolescentes no 25 de Abril?

“ Na Terra do Comandante Guélas”
António Miguel Brochado de Miranda
Papiro Editora

Papelaria “Bulhosa” Oeiras Parque, Papelarias “Bulhosa”, FNAC ou www.livrosnet.com
Filmes de Apresentação no “Youtube” em “Comandante Guélas”
Diogo disse…
Isto era quando as pessoas conviviam diariamente, os homens na taberna e as mulheres a descascar feijão, todos na conversa.

Hoje, passamos milhões de horas mudos, a ver telenovelas, os CSI, os telejornais e os jogos de futebol. A qualidade de vida decresceu.
Ana Camarra disse…
Fernando Samuel – Pois, existiam tantas assim. Há conta desse coelho e de ougtro que tratava como animais de estimação não consigo comer os sacanas dos bicharocos.

Capitão Merda – Não sei porquê não me surprendo.

Sensei – Hoje é mais sofisticado ou talvez não…

Chochos também se comiam nas tabernas!

Diogo – é uma questão de opções, por um lado tens razão, por outro lado podemos sempre mudar isso, não é?

Beijocas (esta gaja está com gripe!)
ferroadas disse…
Olá amiga

Sabes porque não há tascas, os velhos nem cheta têm para o copito, os novos querem outras merdas que só fazem mal, e depois, bem e depois há a ASAE.

BJS
Anónimo disse…
ora, por um lado, a maldita Asae, por outro, porque não há quem queira continuar a tradição... e é uma pena. qualquer dia estamos completamente entregues à junk food... até mesmo aqui no Alentejo, elas vão desaparecendo...
pbruno
(a propósito de tabernas alentejanas, vou copiar a ideia e fazer um post... brevemente)
;)
beijinhos!
Ana Camarra disse…
Ferroadas - Ainda sobrevivem algumas, felizmente. A ASAE é a a PIDE do prazer...


pbruno - Faz sim.


beijocas
samuel disse…
Que belo texto! Leva-nos ao nosso passado, sem esforço aparente, ficamos por ali um pedaço, revendo amigos e histórias e volta-se ao agora com um suspiro... (ai a idade!...)

Abreijos
Ana Camarra disse…
Samuel

Agora que estou mais crescida cada vez me convenço mais que a idade é um estado de espirito.

bjks
PDuarte disse…
como não há tanta coisa. como não há mecearias.por estes dias ouvi uma frase assim:
- não sei como é que há gente que ainda se avía na mecearia.
- é gente que não liga ao dinheiro.

engraçado e cruel.
Ana Camarra disse…
pduarte

muito cruel....


beijo
Boa noite,
Partilhei este texto com tantas memórias num grupo que criei no Facebook, cujo link deixo para consulta:
https://www.facebook.com/groups/memoriasdefamilia
Muitos Parabéns
Maria Mascarenhas