https://www.youtube.com/watch?v=8yaMO_mIvAY
“Enquanto a cidade inteira vai digerindo o seu jantar
E todas as ruas e praças se lavam com essência de luar
Enquanto as estátuas famosas bebem brandies e aveledas
E as tílias se entreolham meigamente nas alamedas
Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim”
Perguntaram-me se o caminho me
cansa, por acaso não, quando vou muito cedo o barco vai cheio, há sempre alguém
conhecido, as caras sacodem o sono, há um cheiro a café no barco,
reconfortante, o rio é estrada, apesar da correria de entrada e saída, decidi
não correr nunca, olho os rostos, as caras já familiares no autocarro, os amores-perfeitos
que pintalgam de cor os canteiros e
as papoilas que nascem teimosas entre a relva formatada, os
desenhos intricados na pedra da calçada, como desenhos árabes de hena, chego ao
destino, cheira a manhã.
Se vou mais tarde, consigo ver
outros pormenores, há menos gente, o prédio com varandas com colunas, os
desenhos de azulejos hispano árabes nos prédios pombalinos, as águas furtadas,
as fachadas Valmor, as vazias, os turistas que circulam de manga curta e
calções, maravilhados com tudo, a perguntar direções, a ver aquilo que por
vezes escapa a quem passa todos os dias.
E de carro, há a formatada e
pouco excitante auto-estrada, mas depois, há a ponte o Rio, os barcos que
parecem brinquedos, o estuário, o dédalo de ruas mais intricadas, as fachadas
diferentes das habituais, com estátuas, carrancas, frisos, a loja de sumos
naturais pegada a fast food, a papelaria velhusca, a retrosaria e uma daquelas
lojas que há em todo o lado, replicadas até ao infinito como uma coisa esquizofrénica.
Há os jardins, o rio do lado de
cá, com moinhos e casas que identifico os ocupantes, há o rio do lado de lá,
onde me habituo cada dia mais, seja mais tarde, mais cedo, de carro ou de
transportes, há as árvores, os pardais e as gaivotas dos dois lados, as
crianças que saem e entram de bibe e mochila, o sol da manhã e do fim de dia, a
noite mesmo.
Como me cansar de cruzar as
margens~, se cruzar margens é a minha natureza?
“Enquanto a luz do promontório ensina a costa ao barqueiro
E arde o rum forte no zimbório e traz lucidez ao faroleiro
Vou pondo malha sobre malha com o labor dum tapeceiro
Palavra, acorde, som, a talha e a devoção dum mestre-oleiro
Vou guardando as margens
Velando os lírios do jardim”
Carlos Tê/Rui Veloso
Comentários