Castelos de areia


Pronto está tudo no sitio, amanhã começam as inscrições, mais vinte e cinco meninos de todas as cores e feitios, olhos grandes, dentes de leite a cair, o menino com um ligeiro autismo que brinca sozinho e que de repente abraça-se a mim, o miúdo revoltado com palavreado de estivador que não combina com corpo franzino, já com brinco e crista como o Jogador de Futebol da Moda, que não sabe brincar, nem admite perder, o outro mais gordinho, que avó recomenda “se ele se portar bata-lhe”, que inventa todas as asneiras do mundo em tempo recorde, as manas brasileiras já cá nascidas, que parecem ter consigo a fome de todos os antepassados que deambularam pelo sertão do nordeste, com nomes estranhos e cabelos longos, a menina doce que me diz sempre “gostava tanto de ver o meu pai, outra vez”, outros meninos de famílias vulgares, uns com pai e mãe, outros com pai mãe, madrasta, padrasto, irmãos de um lado e de outro e outros que são irmãos dos irmãos, aquele que o pai morreu com uma seringa no braço e olhar vazio e ficou sempre com uma sede de amor, o outro que alterna á vez vir o pai ou mãe com ele e quando se juntam discutem com palavras feias e ele encolhe-se junto a mim…
Está tudo tratado, a conversa com os meninos mais velhos que vão ajudar a tomar conta, trazem histórias com eles que eu ainda não descobri, num noto entusiasmo, noutro um certo receio de não estar á altura e a outra mais calma e calada, não emite vibrações.
Estando tudo no lugar falta contabilizar, blocos de barro, lápis de cor e cera, aguarelas e bolas, contar as cabeças de todas as vezes que os levar até à mata, porque primeiro ficam indecisos os meus meninos que só conhecem o cimento e o alcatrão, olham para as arvores meio assustados, escutam o canto de pássaros com surpresas, inventam cobras em cada casca de árvore caída, depois espalham-se primeiro correm com uma liberdade inesperada, depois tendem a dispersar-se, depois ralho, dou-lhes a cheirar as bolotas que caem dos eucaliptos, ensino-lhes que as pinhas tem fruto, quando os levo ao mar é outra loucura, primeiro chapinham, perguntam por peixes aranha, por tubarões, a maior parte não sabe nadar, ensino, “Não se atira areia a ninguém!”, mostro-lhes como se fazem castelos de areia, choramingam para sair da praia, chegam cá cansados e felizes de bochechas rosadas e sorrisos lindos, gostava de lhes ensinar a fazer castelos de sonhos….

Comentários

Fernando Samuel disse…
Fazer castelos de sonhos?: mas é isso mesmo que estás a ensinhar-lhes a fazer...

Um beijo.
Maria disse…
E eu gostava de trabalhar com crianças, como tu...

Beijos.
Diogo disse…
Também já tinha saudades das peripécias do dia a dia (excelentemente escritas), em contraponto aos assuntos «pesados» que normalmente abordo. És, quase sempre, a lufada de ar fresco.

Um beijo.
Anónimo disse…
A menina tem de aprender a manter uma certa distância das coisas.
Tenho analisado os seus "posts" e vejo que tem vivido muito presa dentro de si própria.
Não pode ser assim.
Sabe que há pessoas que se aproveitam de nós, quando abrimos a "guarda"?
É verdade.
É como se fosse uma espécie de exploração da nossa bonomia, da nossa vontade de ajudar e de saber fazer coisas.

Liberte-se.

Reserve uns momentos da vida também para si. Não os gaste tanto com os outros. É um desperdício.

Ou acha que não tem direito?
salvoconduto disse…
O único castelo que ousei construir era de cartas. Desisti e passei a tentar construir pontes.

Abreijo.
Anónimo disse…
Olá Ana,
Gosto tanto de a 'ler'! Os seus posts emocionam-me e tocam-me. Continue por favor.
Boa praia com os seus meninos.
Cidália
Anónimo disse…
Olá Ana,
Gosto tanto de a 'ler'! Os seus posts emocionam-me e tocam-me. Continue por favor.
Boa praia com os seus meninos.
Cidália
Ana Camarra disse…
Fernando Samuel - Tento, pelo menos tento.

Maria-Podemos combinar para o ano preciso sempre de ajuda.

Diogo-Tinha mesmo saudades.

Anónimo(a)-Tenho um amigo que me diz o mesmo, isto não é defeito é feitio.

Salvo-Os sonhos por vezes ficam sólidos, afinal pelo sonho é que vamos...

LN-Obrigado.

Cidália-Para a semana, ainda bem que gosta.

Beijos a quem de beijos abraços a quem é deles
Zorze disse…
Voltas a viver a histórias puras de crianças ávidas de Vida.