Estava quase


Há cerca de 36 anos eu tinha 7 anos acabados de fazer, tinha começado em Outubro na Escola Primária, não na escola Primária Oficial mas num Colégio dirigido por um reconhecido pedagogo com ideias mais amplas que o normal, eu não percebia certas coisas: não percebia porque é de vez em quando existiam uma espécie de festas de aniversário na minha casa, sem ser o aniversário de ninguém, com homens e mulheres desconhecidos a quem a minha família tratava por camarada; não percebia porque é que recebíamos noticias de amigos da família que tinham sido presos, eles não eram maus; não percebia porque é que existiam lá em casa discos com músicas que eu aprendia, mas nunca podia ouvir muito alto nem poderia cantar fora de casa, escondidos em capas de outros discos, frequentemente em capas do Conjunto “Maria Albertina” ou do “António Mafra”; custou-me muito a perceber uma noite que a minha mãe não dormiu espreitando a janela e o meu pai chegou de madrugada com nódoas negras e a roupa rasgada, no outro dia explicava-se com uma largada onde tinha ido com uns amigos, também me custou a perceber que pudessem entrar pela casa dos meus tios de madrugada e que eu fosse arrancada da cama por homens de caras zangadas, apesar do meu tio insistir que naquele quarto dormia uma criança e uma velha, assustada vi revirarem gavetas, colchões, espalharem roupas e brinquedos; chegavam pessoas já de noite, com um ar de quem não quer ser visto, com embrulhos, eram recebidos com abraços fortes, com o tal tratamento de camarada, tanto ficavam algumas horas, parte das quais trancados numa sala com o meu pai ou com o meu tio ou com os dois e mais pessoas, como ficavam vários dias, quando se iam embora levavam o casaco do meu pai ou cachecol do meu tio, uma merenda, algum dinheiro e despedidas comovidas, no meu carto existia um poster com a declaração Universal dos Direitos da Criança, no corredor o homem de Vitruvio tinha escrito por cima os Direitos do Homem. Falava-se da Guerra, falava-se “lá de fora”, falava-se em sussurros, recomendava-se atenções e cuidados e por muito que o oficial do Quartel da GNR frente do outro lado da rua dissesse que eu podia ir ver os cavalos sempre que quisesse lá em casa nunca me deixaram. Percebia que existiam meninos sem Direitos, sem sapatos, sem festas de aniversário, sem brinquedos, percebia que existiam homens jovens de olhar parado ou de cadeira de rodas e que se dizia que “…foi a Guerra…”, percebia que o meu pai não tinha ido a nenhuma largada…

Há 36 anos isto estava tudo a mudar…



(publicado também no "Cheira-me a Revolução")

Comentários

Diogo disse…
Pois é chegada a altura de mudar novamente e radicalmente. E não ter medo de o fazer, tal como o fizeram todas essas personagens que descreveste.

Beijo.
Chego através do Rochedo, por indicação do Carlos, a quem agradeço por me propiciar a opoetunidade de conhecer este espaço.
Por certo voltarei muitas outras vezes.
Um abraço.

Dulce
We disse…
Às vezes, ficamos tão zangados e deprimidos com todos os sonhos que não se cumpriram, que nos esquecemos de que, no Portugal de hoje, podemos gritar a nossa indignação e lutar "às claras" por um mundo mais justo.
Na verdade, é esse o dever moral que herdámos de todos os que se sacrificaram em nome de tantas causas que nos parecem irremediavelmente perdidas: o de não baixarmos os braços, dizendo "não, não vou por aí"!
Unknown disse…
Tu ainda te lembras desses homens de cara feia que te arrancavam da cama, dos "camaradas" que os teus pais recebiam em casa e de tudo o mais que contas. Tb me lembro de outras histórias, não tão ricas como a tua. Mas para para é preciso que todas estas memórias sejam mais do que "estórias" de Anas e passam às novas gerações, para as quais o conceito de "lutar" deve andar um pouco desfasado do conceito de "direito" e "dever". Acho q as gerações mais recentes, "vão mesmo por aí, por onde for mais fácil"
LuisPVLopes disse…
Eu hoje luto e também sou vítima de homens de cara zangada, homens quase idênticos aos que levavam o meu pai quando eu era pequeno, iguais aos que quando eu tinha apenas e quase 2 anos, me tiraram da minha cama e me atiraram ao chão colocando o pé na minha cabeça afirmando a irem esmagar acabando assim com um futuro comunista.
Só que hoje, eles não se dizem ser da Secreta, da Pide ou Dgs, mas sim Socialistas. Ameaçam a minha integridade física, usam os poderes do estado como a PJ para invadirem a minha casa e revolverem tudo do avesso, apreenderam-me os meus meios informáticos, toldando falsas acusações que na realidade escondem o mais puro e directo acto de perseguição ideológica.
NÃO TENHAM QUAISQUER DÚVIDAS O FASCISMO ACTUALMENTE DESIGNADO COMO NEOLIBERALISMO DO PARTIDO SOCIALISTA, TENDO A CONIVÊNCIA SOCIAL DEMOCRÁTICA, CENTRISTA E BLOQUISTA ESTÁ AÍ.
O seu alvo é claro como água, o PCP e todos os seus apoiantes militantes ou não.
A prisão de Elvas foi suspensa, mas voltará, assim como a nova prisão de Angra do Heroísmo, outras estão na calha, mas ninguém fala disso, fala-se da visita papal, do campeonato de futebol na África do Sul, de acções concertadas para dar uma ideia de que a justiça em Portugal funciona, com constituição de arguidos nos processos da face oculta, do Freeport, dos submarinos, etc., mas tal como a Casa Pia, o BPN, a Independente, etc., tudo se esfumará em NADA, são manobras concertadas de credibilização, enquanto o poder autocrático neoliberal do bloco PS(be)/D(pp) se instala, silenciando o PCP nos média acreditando que até ao final do ano ninguém se lembrará deste partido e aí poderão perseguir e silenciar tudo e todos o que o constituem, esquecendo que a sigla PCP tem 89 anos e sempre sobreviveu a tudo aquilo que lhe atiraram para cima.
Uma coisa garanto, o PCP persistirá e continuará a combater este Neoliberalismo, digam e façam ELES o que disserem ou façam, em nome da igualdade, da fraternidade e do povo Português.

Xôxos

Ouss
Fernando Samuel disse…
Pois estava. E se que maneira!
(pena foi que depois da mudança viesse a contra-mudança)

Um beijo.