Puzzle



Dói-me o braço cada vez mais, arrumo as coisas na mala mecanicamente e transporto a pasta cheia de cadernos, anotações, cópias de Leis e Decretos, sei que tenho um prazo limite para certas coisas, mas dentro da minha cabeça as coisas fogem para outro lado.
Queria ter cinco anos, outra vez, vestir uma canadiana de fazenda com forro de xadrez e ir até à Doca de Setúbal ou de Sesimbra pela mão do meu pai, espantar-me com o tamanho dos barcos, respirar fundo o ar salgado, ver as redes com escamas presas e as mãos rudes dos pescadores presas a elas, os peixes prateados a estrebuchar numa luta pela vida. Beber um chocolate quente que me deixava uns bigodes castanhos…

Volto ao relatório, faço um esforço de memória, leio até nada daquilo fazer sentido, imprimo leio em papel, é sempre melhor, descubro tropeções de dedo no teclado que mudaram significativamente o conteúdo das frases, procuro palavras melhores, alternativas para não repetir outras, o esqueleto está feito, a maior parte do miolo também, agora é encher a parte financeira e preocupar-me com a forma.
A forma, a forma das minhas mãos encaixadas noutras, as formas que dava preguiçosamente á areia estendida na toalha com o corpo molhado, o sol a morder a pele, a repetir aquele gesto na areia, antes de me levantar e mergulhar outra vez, e ficar ali até o sol tingir de vermelho e laranja o mar, sem horas, num tempo suspenso, apenas com a forma da mão encaixada noutra.
Chamadas telefónicas, sim não existem soluções que agradem a todos até porque existem pessoas irredutíveis que só se preocupam com o seu umbigo, vamos estudar, estou disposta a ir ao local se for necessário, sim claro, faremos o melhor possível, fazemos sempre o melhor possível.
Faço sempre o melhor possível, quando agarrei na mão e enxuguei a testa daqueles que sabia que iam partir, mas antes de partirem, precisavam só daquela minha mão, que lhes alisasse a testa com uma carícia, quase maternal, que lhe dissesse que estava tudo bem, embora soubéssemos que era uma grande mentira, fizemos o melhor possível.
Tenho os olhos a piscar de tanto fixar o ecrã, acabou de cair um quadro atrás de mim que desistiu de estar pregado na parede, uma chamada, consulto a agenda, tento encaixar peças de puzzles diferentes, entra alguém no Gabinete “Tens um minuto? Preciso de desabafar!”, “Sim, claro!”, paro e acendo um cigarro, ouço o desabafo, tento-o encaixar no molhe de papeis com anotações. Outro puzzle.
Outro puzzle, este é de madeira e tem as formas dos animais, e eu mantenho-me de pijama a ajustar as peças e a dizer “Diz lá à mamã como faz o gato?” “Miauuuuuu”, assim sentados na manta no meio da sala, uma música baixinha a tocar, o bebé sentado na espreguiçadeira a olhar interessado para o puzzle que eu e o irmão construímos e a rir com o mesmo riso desbragado que ainda hoje têm, um riso feliz, e a mostrar que sabe dizer “mamã”, e no mesmo puzzle outro pijama, daquela manhã lenta de domingo de Outono que passa e diz “Diz lá ao pai como faz o cão?” e sorrimos e tudo se encaixa.

Comentários

Zorze disse…
Ana,

Gostei muito.
Dos links da memória e do pensamento.
O dia-a-dia e os "rapports" de outras coisas vividas que subsistem em paralelo.

Beijos,
Zorze
Diogo disse…
E é assim a vida: quebra-cabeças de comoções, confusão de emoções, charadas de sensações e puzzles de devoções.

Beijo
Akhen disse…
Ana

Já pensaste que a tua vida não poderia nunca ser vivida de outra maneira?
Poderias vivê-la, mas não eras tu, não era a Ana que vai ao baú das recordações buscá-las e que lhes dá vida. Não era quem faz todas essas 50 coisas e que lamenta não poder fazer 51 ou mais.
Ao ler o que descreves da tua vivência, acode-me à lembrança recordações adormecidas no meu subconsciente e mesmo no inconsciente.
Obrigado Ana. Agadeço-te por te ler e agradeço-te por me fazeres reviver também as minhas recordações.

Paz e Luz em tua casa
Fernando Samuel disse…
Simplesmente, um dos teus melhores textos.

um beijo.
mugabe disse…
Desculpa-os Ana , porque eles não sabem a representante que têm !!!!

Beijo
Ana Camarra disse…
Zorze

A minha cabeça é assim, suponho que as dos outros também.

Diogo

È assim mesmo, agarrar as boas para passar pelas outras.

Akhen

Não agradeças.
De qualquer das formas estou sempre a olhar para a frente sem esquecer o que ficou para trás, quantos ás coisas que quero fazer, acho que quero fazer 151...

Fernando Samuel

Vindo de ti, um grande elogio.

Mugabe

Eu desculpo, eu desculpo.

Beijos