Retalhos, gregas, alinhavos e outras coisas



A estrada desenrola-se como uma tira de tecido, preta, cinzenta escura, como se fosse alinhavada, por fios brancos, não sei porquê lembra-me as gregas, fitinhas onduladas e coloridas que eu tinha pregadas num bibe, há muito tempo atrás.
A paisagem vai mudando tão gradualmente que quase nem se dá conta, primeiro o rio, nos baixios onde se costumam ver flamingos e outras aves a petiscar camarões e outros bichos, estão pessoas, de costas dobradas, galochas, entre ilhotas de ervas e restos de salinas. Depois a cidade, com retalhos velhos e novas, zonas que se cruzam, coisas bonitas e barracões feios, depois outra vez fora disso, mais prédios, quase todos iguais, parques de negócios, zonas industriais, centros comerciais a prometerem felicidade instantânea, depois outras coisas, rebanhos de ovelhas, um cavalo ou outro, uma serra a crescer devagarinho, moinhos de vento, as pedras a mudar de feitio, castelos, matas, matas cheias de bétulas e choupos, pinheiros, mansos e bravos, orgulhosos e os eucaliptos a invadirem tudo, nem sequer gradualmente, nem sequer discretamente, porque crescem depressa e nem sequer encerram o mistério do crescimento lento, são arvores quase instantâneas que para crescer assim transformam terra em areia.
E pássaros, poupas, gralhas, corvos, um bando de patos, aves de rapina que só consigo distinguir pelo belo voo de quem não se rala com que se passa cá em baixo, mas é só a fingir, porque estão a observar tudinho.
Que pensaram eles sobre estes estranhos seres encaixotados em carros, autocarros, comboios, sempre a seguir aqueles trilhos demarcados, a protegerem-se em abrigos de pedra sem quase nunca olhar para cima?
Faço quinhentos quilómetros, num dia limpo de outros compromissos, para abraçar uma amiga e beber um café com ela, como se o fizéssemos todos os dias, voltar outra vez e já não ver moinhos, apenas estrelas, nos intervalos dos retalhos das cidades que passaram a ser retalhos luminosos, o alinhavo branco da estrada e nem eu sei porque me lembro das gregas no bibe, do sabor das regueifas, na cidade como uma manta de retalhos, na invasão dos eucaliptos, na estrada como uma tira de pano, no pensamento dos pássaros…

Comentários

Akhen disse…
Ana

Pegando no teu post, falo de corvos, aves de rapina que utilizam umas gralhas para que o bando de patos, não repar que estão a plantar os eucaliptos que transformam a terra em areia, uma terra que pouco ou nada produz e deiza muito dos patos sem dinheiro para nada.
E o que mais faz doer é que os alinhavos, as gregas dos bibes e até o intervalo dos retalhos das cidades, que são completamente diferentes do tecido original, até esses começam a ser lembranças na nosso memória, como tu nos lembraste.
Só me doi que muitos, mas mesmo muitos dos patos do bando, não tomem consciência do que se passa à sua volta e continuem a ouvir e a seguir as gralhas que apenas repetem o que os corvos e as aves de rapina querem que lhes seja dito.
E tudo isto é como uma tira de esquecimento no pensamento dos passaros que já nem se lembram qual é a cor de uma seara madura onde, não interessa o tempo, iam buscar alimento para os seus ninhos.

Paz e Luz na tua casa
Diogo disse…
Um naco de prosa bonita, a cair mais para o romantismo do que para o realismo.

Beijo
Fernando Samuel disse…
Belo e criativo texto.

Um beijo grande.
Zorze disse…
Annuelle,

O teu post é muito bom, muito bem escrito e etc. e tal...

Passando tudo isso e para lá, do mais além, coisas que existem. Pelos menos aos olhos de quem consegue ver, diremos, outras coisas...

O corte do cabelo, a griffe, foi a faca que me trespassou o psico-soma. Tal foi o impacto, da impactante beleza, que tive de recorrer às mais secretas artes de recompozição.
Estas coisas, para profissionais tem que ser em décimos de segundo.

Os lábios, desenhados à mão, que exteriorizam pulsos eléctricos coordenados do cérebro físico, resultado de todo um somatório do Ser.

Mas, que linda menina, que és!

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
Akhen

Entre aves de arribação, passarocos em gaiolas, amarrados pelas patas ou por outras coisas, ainda há muito passaro livre.

Diogo

Eu por vezes sou assim.

Fernando Samuel

Foram as minhas asas.

Zorze

O cabelo é o que é apenas mais curto, o impacto dabeleza é um exagero, sou a mesma Ana de sempre.
Talvez só mais calma.

beijos