È para lá


Os carros estão assim parados como animais num curro e do asfalto cresce o calor visível que tolda a vista, a gravata foi pousada no lugar do morto, a rádio transmite as filas de trânsito evidentes e a camisa há muito que ensopou em suor tornando-se uma segunda pele incomodativa. Ao lado um puto, abana-se e canta ao som da música que lhe estremece o carro, olha com um pouco de inveja, afinal ele também sonhou em ser músico, fazer parte de uma banda, modelos apaixonadas por com ele, os fãs ao rubro a pedir mais, horas a fio na garagem do Jaime, com guitarras em segunda mão e posters dos ídolos, tiques de passar a mão pela poupa, ensaios só de tarde, a noite era para o carro do pai do Jaime, a garagem…Na garagem do Jaime de tempos a tempos organizava-se uma Festa, convidava-se umas quantas raparigas que se aprumavam e traziam um bolo caseiro, a melhor roupa, risinhos e cochichos, tocavam, tinham palmas, depois ligavam o gira discos, dançavam o slow em arremedos de carinho e fúria de conquistar.
Nessa altura sonhou em ser músico, sonhou também em correr mundo de mochila ás costas, sonhou em ser repórter de guerra, sonhou tantas coisas, a vida mudou-lhe os sonhos, acabou assim a vender fotocopiadoras, a atravessar as duas margens num carro sufocante ou gelado, conforme a época, com o curso inacabado na gaveta das coisas para depois, num apartamento um pouco mais longe, um pouco mais barato, com as mobílias possíveis e a guitarra encostada a um canto como um jarrão decorativo.
Não conseguiu o amor das modelos, apenas o de uma rapariga, daquelas da garagem, nem correr mundo, apenas uma viagem núpcias a Tenerife, onde contaram moedas e fizeram amor loucamente.
Ela tornou-se uma mulher cortou o cabelo, mudou o corpo para formas mais redondas, arrumou as saias pintalgadas, mas guardou o mesmo sorriso e é para lá que ele vai.

O autocarro sufoca, ela está cansada da corrida para o apanhar e mesmo ao lado há um velho que cheira a cebola, a mofo, a terra, a remédios, com pelo a sair do nariz, das orelhas, uma voz acida e grita que “já não há respeito! Esta juventude está perdida”. Por esta juventude refere-se a um par de namorados atracados, em murmúrios, risos abafados e beijos longos. Agem como se estivessem sós, num parque qualquer, ele tem um brinco, as calças a meio das nádegas, ela tem uma coisa mínima, decotada, uns saltos enormes onde não se equilibra e um cabelo de juba, lindo e rebelde, em cachos e caracóis, cor de mel.
Desvia-se do velho de modo a poder ver os namorados, a mala pesa-lhe na mão, para além do passe, carteira, chaves, lenços de papel, agenda, tem a caixa plástica do almoço, uma revista, o casaco de malha que levou de manhã, o saco de plástico com o pão e uns pêssegos que perfumaram o passeio a que não resistiu.
De repente o rapaz olha para ela e faz-lhe um sorriso a que ela corresponde, pensa que tem de começar a comprar meias, que é uma chatice, nas costeletas que tirou para o jantar, no fim do mês que tarda, para chegar o salário e conseguir reabastecer a despensa, equilibrar umas coisas, comprar uns sapatos para o miúdo, pensa naqueles jovens cheios de promessas e tem uma ponta de inveja.
Afinal ela já foi aquela rapariga, só de saias indianas diáfanas e cabelos lisos, apaixonada por um músico, de garagem mas com um futuro promissor e uma poupa fenomenal.
O presente não é igual ao que sonharam, mas de vez em quando depois de se deitarem os miúdos ele toca-lhe uma canção, baixinho e para lá que ela vai.

Comentários

Zorze disse…
Ana,

Excelente este post, com pormenores brilhantes, só ao alcance de um intelecto de elevada dimensão como tu.
Serve também como uma caracterização social de milhares de vidas sub-urbanas.

O nome Jaime, fez-me lembrar dois Jaimes que se cruzaram na minha vida. Qualquer um deles com vidas dramáticas.

Um foi meu colega na escola primária, o miúdo parecia que tinha o diabo no corpo. Era incontrolável, de que eu tenha na minha memória nunca conheci uma criança como àquela.
De inúmeras tropelias e propenso aos acidentes, tinha uma parte da face queimada de um incêndio que provocou. Uma vez, fugiu da mão do Pai e foi atropelado na passadeira da Praça do Comércio. Tinha uma das mãos meio defeituosa de uma bombinha de carnaval que lhe rebentou na mão, entre outras.
De tantas, uma foi fatal, no carro com o Pai, e sempre a atazanar, distrai o Pai de tal maneira que foi embater num camião. O Pai ficou gravemente ferido e o Jaime morreu com 9 anos. Foi a "minha" primeira morte, ainda criança e logo de um amigo da mesma idade.

O outro, conheci-o já na fase adulta, colega de profissão, tentou-se matar de várias formas numa madrugada que para ela deve ter sido infernal. Não era uma tentativa, pois iria morrer. Mas, como na vida, há coisas que nós desconhecemos, com uma daquelas coincidências "in extremis", de manhã alguém foi dar com ele, já inconsciente, a esvair-se em sangue na banheira. Safou-se por um fio.

A vida é assim e tudo pode acontecer. Pelo menos é isso que me tem ensinado.

Beijos,
Zorze
Akhen disse…
Ana

Um dia que se repete e que nunca se sabe se é o anterior, o presente ou o futuro.
O par que aproveita o presente, porque o futuro é incerto. O velho que grita contra o que não pôde fazer na juventude.
Ele, o das festas na garagem do Jaime, igual a tantos Jaimes, destila e só irá pensar em tudo o que não fez, quando chegar a casa e olhar a guitarra.
Ela, qualquer nome, não interessa , a olhar o que a rodeia, mas a pensar nos dias duros que lhe sobram até ao fim do mês.
Mas para mim, o mais sensível e humano, é o que, à noite, quando a familia já descansa e o tempo é só deles, os dois, sozinhos, percorrem mais um pouco do caminho inexplorado, quando a guitarra os leva pelos mundos que tão bem conhecem em sonhos.
Quantos sonhos se ficam apenas por isso mesmo, por sonhos?.
Ana
Quando escreverás um livro?
Diogo disse…
Belíssima descrição de uma história de amor.

Beijo
samuel disse…
A vida como ela é. O lado bonito... descrito soberbamente!

Abreijo.
Anónimo disse…
Mas que pequena grande história...
Soberba e recheada de pormenores deliciosos.
É fantástica a forma imprimes magia nos momentos mais simples...
Excelente texto e belíssima música como sempre !

A foto do topo, tirada no Brasil.......não havia outra daí ?? heheheheh é só para me meter contigo!!

Abraço!
Mar Arável disse…
Belos olhos para ver

as realidades por dentro
Fernando Samuel disse…
É para lá que vai e vai bem - bonito!

Um beijo.
Anónimo disse…
Que bonito... que mais dizer?
Ouvir a Maria Rita e ler outra vez!

Os eventos políticos, roubam-nos o tempo para conversar, tenho passado aqui mas de corrida.
Um beijinho

Lagartinha de Alhos Vedros
duarte disse…
pois o passado , e os sonhos...
e à nossa frente a realidade a trazer-nos realidades parecidas com muitas já passadas, e que (felizmente) ,repetir-se-hão.
existe em nós sim, e somos isso tudo, mais o dia a dia e os nossos sentimentos, viajamos sempre (e de mochila às costas ou não)...para onde ? não sei. só sabemos que vamos e somos.
abraço do vale
Ana Camarra disse…
Zorze

Obrigado pelo elogio.
Todos conhecemos Jaimes…
Por acaso dois que conheço terríveis um de 10, outro 40 e tal são Jaimes.

Akhen

Não sei este casal, sem nomes próprios, pode ser tantos casais que conheço os sonhos também se vão construindo no dia a dia.
O livro, pois, não sei, sinceramente, tem de me dar um clik!

Diogo

As histórias de amor são assim.

Samuel

Há um lado bonito, até nesta correria.

André

Apenas uma historia.

Cidadão

Esta história não tem nação, pode ser no Brasil!

Mar Aravél

Sou míope, mas ando sempre a procura do outro lado.

Fernando Samuel

Para lá que temos de ir, para tudo valer a pena.

Lagartinha

Pois, eu sei isto está de doidos.
Lê as vezes que quiseres.

Duarte

Pois vamos.
Mas olá que esta história não é minha, tirando as saias indianas e os cabelos longos, o meu cara metade nunca tocou….que eu saiba!

Beijos