
Gosto de farturas, assim uma ou duas vezes por ano, tenho sempre pena quando compro aquelas coisas de farinha frita com açúcar e canela não ter uma chávena daquele café das velhas que a minha avó fazia e a minha mãe ainda faz, aquele da água a ferver depois deita-se o pó, mexe-se e espera-se que o café assente, um café desses combina lindamente com uma fartura quente, frias também não tem graça nenhuma parecem borracha, se bem que comi borrachas na primária e na altura achava aquilo saboroso…o que não me sabe bem é outras farturas, estou farta de noticias parvas e deformadas, estou farta de promessas vãs, estou farta de remar e nadar contra a maré, várias marés aliás, estou farta de pensar que um dia tranquilo onde nada me inquiete seja um luxo a que não me possa dar, estou farta de esperar por um futuro melhor, eu não quero um futuro melhor, quero um presente em condições, quero não ter de me angustiar como mãe, primeiro porque tive de arranjar uma ama a quem confiar aquele pedaço de mim apenas com três meses, depois porque tive de encontrar uma creche onde tive que equacionar qualidade e preço, depois porque tive de passar por isso outra vez na segunda volta, porque tive de fazer estratagemas para ensinar os meninos a abrir a porta com chave e a esperarem um pouco que eu chegasse a casa esbaforida com o coração nas mãos, tive de prescindir de coisas para comprar livros escolares, tive de fazer contas para os óculos cuja falta os obrigava a franzir os olhos frente ao quadro, tive de fazer contas para pagar as propinas e continuo com o coração nas mãos, porque não sei se vão ter saídas profissionais, se eu alguma vez vou ter reforma, se o mês não me sobra no fim do ordenado, se vou ter sempre salário, médico de família já me habituei a não ter, se o meu corpo guarda mais nódulos escondidos de todos os exames como meninos travessos, estou farta adiar indefinidamente as férias de sonho, a ida ao concerto, a compra do tal disco, do tal livro, estou farta de interiormente de me esperançar que mais ninguém na família morra de doença prolongada, porque todos morrem de doenças prolongadas, onde morrem pouco a pouco todos os dias com os olhos lúcidos a despedirem-se e eu prolongo-me neste sentimento de impotência e dor que me afoga e faz doer a garganta, o peito e seca-me os olhos, nunca me faz chorar, estou farta de ver crianças a sofrer, estou farta de orçamentos de estado que definem como prioridades tudo o que considero supérfluo, estou farta de contemporizar, de ter que ser racional, de ter a cabeça fria, embora fervilhe com montes de coisas, só queria uma fartura morna com muita canela e um café daqueles…
Comentários
Uma das frases mais geniais que já ouvi nos últimos anos. Já chega do «esperam-nos sacrifícios» enquanto os filhos da puta vão enchendo o bandulho até ao infinito.
Chega de futuros. Falemos do presente. Tratemos de tornar o presente o mais desagradável possível aos filhos da puta. Estou convencido que o nosso presente muda na razão inversa.
Beijo
Mudar isto, é o único caminho!
Abreijo.
Quentinnho com umas migas de broa, logo pela manhã, ai Ana o que me foste lembrar.
Abreijos
Abraço!
Farta sim, mas nunca te canses...
(sei que não gostas de Brecht, mas ele tem razão...) :))
Beijo, Ana
Pois com o futuro não me governo!
Samuel
Tem de mudar.
Salvoconduto
Esse café é do melhor que há!
Savimbi
Eu ando é fartinha.
Maria
Eu gosto de Brecht! Adoro!
Não gosto é de Joaquim Pessoa...
Beijos
não são só das farturas com o tal café "das baratas", como dizia minha mãe, ou dos "jaquinzinhos" fritos, fritos de vespera e comidos pela manhã, com o tal café.
Ela já não me faz esse café, porque já não está cá, e eu não sei fritar carapaus.
Meu pai, chamavam~lhe "o médico dos pobres" foi-se, seria eu da idade dos teus meninos, sem ver realizado o seu sonho, um país libertado e cumprido.
Como ele, eu queria construir um presente como tu falas, mas é um presente que tarda em chegar.
Mas também queria deixar as bases para o tal futuro. Para que outros não tivessem que esperar, continuadamente como nós, por um país adiado.
Minha Cuba querida. Têm tudo com o que nós sonhamos. Só não terão os luxos supérfulos. Uma das vezes que estive lá, trabalhando, falava com uma pessoa cubana minha amiga que me dizia, na questão do vestuário; "se só temos um corpo, para que precisamos de ter muita roupa guardada.
Mas têm tudo aquilo que é necessário a quem só tem um corpo e uma mente que precisam de ser cuidados.
Havemos de encontrar o fim do arco-iris, e o tal país sonhado.
Abraços!
Beijinhos
Não sei se já te disse, mas, não gosto de farturas. Algodão doce, também não. Preferia os carrinhos de choque.
Quanto às outras farturas, também eu já estou fartinho desta merdúncia toda.
Quando os clientes começam naquela lenga-lenga do costume, que isto é uma vergonha, que este País não anda para à frente. Eu e alguns colegas respondemo-lhes que a culpa é sua, você é que os pôs no poder e agora queixa-se.
Tá aí a queixar-se, você é que os colocou lá!
Calam-se e ficam envergonhados, constatando interiormente a sua estupidez.
E ainda corremos por fora, pois temos de o dizer de forma educada.
Beijos,
Zorze
Um beijo.
Sim acho que sim que havemos de lá chegar!
Cidadão
Somos dois…
Carlos
Que crime! Rais parta, detesto essas invenções, farturas é com açúcar e canela, caramba!
Modernices!
JS Teixeira
Será?
Zorze
Pois estou fartinha, pelos cabelos.
Fernando Samuel
Era cinco estrelas, num alpendre numa noite estrelada e musica baixinha….
Beijos
Belo texto, que saudades eu tinha deste teu blogue!
Um beijinho
Lagartinha de Alhos Vedros
Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe!
beijos