Segundas-feiras bacalhau, é dia de pouco peixe.


Era um homem calmo, naquela idade indefinida de homem crescido.
As suas roupas eram sempre iguais, do cinzento ao azul, um pouco mais claras de verão.
Todos os dias seguia para o emprego, onde se gastavam as horas entre facturas e balancetes, todos os dias almoçava no mesmo restaurante familiar, peixe cozido. Segundas-feiras bacalhau, é dia de pouco peixe.
Ao final do dia rumava a casa, o mesmo autocarro, o barco, as mesmas caras, o resto da leitura do jornal da manhã, chegava a casa descalçava-se, arrumava os sapatos, a casa imaculada, graças à Dª Odete, as caixinhas plásticas no frigorifico, as azuis com tampa branca com uma sopa, as brancas com tampa azul com outra, ao sábado pegava na lista da D. Odete, detergente para o chão, nabiças, cenouras, duas meloas (dão para 4 vezes), duzentas gramas de fiambre de peru e de queijo magro, 8 iogurtes, meio quilo de biscoitos, ao pedir o meio quilo de biscoitos corava.
Sábado ao almoço, cozido de inverno, caldeirada de verão, no restaurante do senhor Augusto, ao domingo um bitoque, uma aguardente no fim…
As semanas iguais, sempre iguais, o telejornal, o concurso onde sabia todas as respostas que os concorrentes erram, só a única falha eram os livros de poesia.
Os livros poesia que teimosamente o chamavam todas as noites, que glorificavam o amor que nunca conheceu, uma vez sim, a Sãozinha, filha da costureira, deitou-lhe uns olhares meigos da janela, e um sorriso resplandecente apesar dos óculos grossos e de um olho um pouco torto, depois casou, viu-a sair de casa com um vestido de merengue e flores na cabeça, o olho mais torto porque não levava óculos…
E senta-se assim todas as noites, a ler quase em segredo aqueles versos de amores arrebatados de corpos desnudados de prazeres inquietos enquanto rói um biscoito, na penumbra só cortada pelo candeeiro de leitura, como se fizesse algo vergonhoso e pensava que até a Dª Odete com a sua bata de florinhas e o seu cheiro de sabão poderia ser alvo daqueles arroubos, se ele tivesse a ousadia.

Comentários

Muito bom. Tem qualquer coisa de Lobo Antunes. Muito Bom.
Anónimo disse…
Oh Ana

Tão triste e tão real.
Quantos deixam fugr assim as Sãozinhas e Odetes?
Conhecemos alguns, não é?

Linda, o livro, Linda, o livro com urgência.

beijos
Soontir Fel disse…
Ana, raramente li, em tão curtas linhas, algo que me tenha tocado tão profundamente, algo em que, ainda que nem em tudo, me reveja, algo que me faça reflectir naquela alma para quem sou espelho nos outros, algo que me entenda e desperte, uma flor vermelha isolada na tundra da indiferença...
Se há livro por detrás destas letras urjo-te que o termines, pois o mundo não ficará completo sem ele, e as nossa vidas perderão mais essa pitada de sentido, esses grãos de sanidade tibetana, na insensatez dos dias perdidos...
A vida é, indubitavelmente, demasiado curta para a temermos - vivamo-la antes, com o desapego de quem sabe que o melhor começa agora...
Muitos parabéns.
Cadinho RoCo disse…
Sem uma pitada de ousadia fica difícil demais.
Cadinho RoCo
Diogo disse…
E quem sabe se não teríamos ali uma Odete ávida de meiguice? A natureza humana é tão complexa...

Beijo
Fernando Samuel disse…
Triste história, esta - mas bonita...

Um beijo.
ah a ousadia......! belo texto! parabens!

Abraço
casadegentedoida disse…
Espelho da alma de muita gente. Quantos que aqui se poderiam rever nestas poucas palavras sábias.
Bjs.
Anónimo disse…
Eu sei que não gostas muito destas coisas, Ana, mas hoje deixei-te um mimo no Delito de Opinião. Foi a forma que encontrei para te agradecer os momentos de puro deleite que diariamente me proporcionas com os teus escritos.
Beijos
Ana Camarra disse…
Sostrova-Não tinha pensado nisso, pensei só em alguém.

Anónimo-O livro….

Soontir Fel – Tibetanos não! Embirro um bocadinho, o livro como em tudo na minha vida é questão de eu assumir que é para fazer.

Cadinho RoCo-A ousadia faz muita falta.

Diogo-Nunca se sabe.

Fernando Samuel-Como escreveu Maria Judite Carvalho “Tanta gente, tanta gente MariaANA….”

Cidadão-A ousadia que falha.

Casadegentedoida-O medo de viver é uma coisa paralisante.

Carlos-Não é não gostar é achar que não mereço. Mas obrigado, sinceramente!

Beijos
Anónimo disse…
você escreve coisas para que eu leia,cabe em meus gostos, cabe em mim inteira toda a sua escrita... Dê licença meiga como os olhares deitados na janela, para que eu acompanhe a partir de hoje as suas letras. Virei sua fã.
Akhen-navegandonaspalavras disse…
Quantas pequenas estórias existem, como esta,do conto, no mundo real?
Ou será que fazemos do mundo real, um livro de pequenos contos, que refletem as estórias reais que nele passam escondidas?
Gostei bastante, mas não só desta, de tudo o que está escrito no blogue; até porque nelas, está reflectida um pouco da nossa própria vivência.
Ana Camarra disse…
jalgs e Akhen -Mi casa su casa...
Ana Camarra disse…
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