O Pintor que pintou Ana…



Pintou sua mana, também.
Este “adágio” era declamado pela Tia Ermelinda sempre que me via, eu não tinha mana naquela altura e gostava de ouvir aquilo, nem sei bem porquê. A Tia Ermelinda era a única que tinha paciência para me dar a canja às colheradas, canja muito disfarçada com muito sumo de limão e hortelã, porque na minha família existe esta tara que a canja de galinha é remédio para quase tudo, sendo eu niquenta e enfermiça, lá mamava com a canja, dizia-me ainda outras coisas “Come minha linda que ainda ganhas uma pombinha em ouro!”
Está-se mesmo a ver que nunca ganhei a tal pombinha, mas ganhei o afecto dessa mulher, que morreu muito jovem, talvez com a idade que tenho hoje, alta em comparação com as demais, com uns grandes olhos que oscilavam entre o azul e o verde, um marido pacato e calmo, que até ao fim da vida se manteve perto de nós com o estatuto de tio, apesar de na realidade não o ser, que ainda acompanhou emocionado o nascimento dos meus filhos, tinha como maior alegria no Natal distribuir-nos as prendas, pagas por ele, escolhidas por cada um de nós, ele não sabia pensava que era a minha tia que as comprava, nós abríamos com um ar de espanto e dizíamos “Oh Tio Luís como é que adivinhou que é este perfume que gosto?”, ele retribuía um sorriso malandro, enquanto desembrulhava felicíssimo as nossas prendas, cachecóis, lenços de pescoço, peúgas, que ele nunca estreava.
Fiquei a saber mais tarde que a Tia Ermelinda protagonizou um escândalo nos anos 50, ao pedir o divórcio alegando a impotência sexual do primeiro marido. Foi um escândalo, numa Vila como o Barreiro, em pleno fascismo, que uma senhora de “posição” pedisse o divórcio, ainda por cima alegando questões sexuais.
A Tia Ermelinda sujeitou-se a tudo, até a um exame médico que confirmou a sua virgindade, até conseguir a anulação do casamento, mais tarde, casou com este homem pacato de gostos simples, que lhe chegava ao ombro, para desagrado da família, que considerava tudo isto vergonhoso.
Acho que foram felizes, pelo menos até ela morrer com um aneurisma, tinha eu uns oito anos, no máximo, ele continuou perto de nós, manteve a casa intacta, tão intacta que já eu tinha uns vinte anos quando o convenci a retirar as mercearias da dispensa….
Estupidamente não tenho nenhuma foto dela, tenho um bule, porque como faço colecção foi me dado o do seu serviço, mas tenho ainda a voz dela na minha cabeça “O Pintor que pintou Ana pintou sua mana também…”.
Espero ter pintado bem o retrato dela.

Comentários

Diogo disse…
Alegar a impotência sexual do marido nos anos 50 deve ter sido de arromba.

Beijo
salvoconduto disse…
Não te preocupes com afoto dela, basta-me o retrato pintado por ti.

Abreijos.
Ana Camarra disse…
Diogo

Quando nasci isso já era passado, mas comentado á boca pequena, sussurado...

Salvo

Espero ter-lhe feito justiça.

beijos
Akhen disse…
Li hoje este post e começando pelo fim digo; Quando a minha mãe morreu, eu pedi aos meus irmãos que me deixassem colocar na lápide o que sentia e sinto, até hoje.
"Os mortos só morrem quando morrem no coração dos vivos"
O recordar a voz da Tia Ermelinda e a frase por ela dita, superam e acrescentam muito mais ao que uma foto pode fazer.
Tudo o que aqui li, são as coisas lindas da infância, que, preenchem, afinal o nosso album escrito na alma.
Eu não necessito ver fotos da minha mãe.
Ah! Do divórcio. Foi um incidente que fez com que fosse feliz o tempo que tinha para ser feliz. Inconscientemente, viveste um pouco dessa felicidade.
CPrice disse…
pintou.
Tão bem que quase a ouvi também ..

:)
Fernando Samuel disse…
Fizeste um excelente retrato dessa fabulosa Tia Ermelinda - e também do «tio» Luis...

Um beijo.
Zorze disse…
Ana,

A minha mente já pintou um quadro de ti.
Não é possível plasma-lo em tela. Se fosse teria um valor incalculável.
E mesmo assim, não o venderia.

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
Akhen

Eu tenho mortos que me acompanham sempre.

CPrice

Ouvistes?!

Fernando Samuel

O “tio” Luís era um querido.

Zorze

Até corei!

beijos