Na janela


Desde que se lembrava que lhe diziam para esperar, para estar assim e ela estava.
Não se lembrava de ter corrido, de ter dado uma gargalhada de ter mexido em algo mais real que a terra dos vasos onde as begónias timidamente floriam na sombra da casa.
Ficava à janela onde lhe diziam que podia estar, na cadeira, a bordar inutilidades, em pontos laboriosos com fios como teias de aranha.
De estar tanto na sombra já escolhia os fios pálidos, cores mortiças.
Tão mortiças como os lábios usados para um beijo convencional, um sorriso sob medida, o comer sem prazer, meia dúzia de palavras de circunstância.
E a vida ia passando na janela, lá fora, crianças que corriam ou inseguras no passos mas seguras nas mãos de alguém, casais abraçados, mulheres que choravam, soldados que partiam, alguns voltavam, amantes em arrulhos de rolas, velhas com cestas cheias de coisas, pessoas com cães, gargalhadas, por vezes um raio de sol que teimava entrar pela janela e era expulso pelo reposteiro cerrado e grosso.
Um dia suspirou, largou as teias de fios mortiços, olhou as mãos já a murcharem, avaliou os seios que tinham pendido sem nunca serem fonte de amor ou alimento, as costas dobradas e tecer as tais teias mortiças, viu-se ao espelho e avaliou os lábios murchos, as rugas sulcadas no rosto, saiu, não esperou mais foi ver o mar, ver a vida para lá da janela.

Comentários

mugabe disse…
Ana,...muito bom !...olha, como vai a edição do livro ?

Abraço!
Zorze disse…
Ana,

Lembro-me de segurar, o meu amigo gato Pelé, na janela da cozinha. Era algo transcendental, ele vislumbrava novos mundos, visões nunca vistas.
Recordo-me com saudade os seus olhos de espanto verdadeiro, como que a dizer - Há todo um mundo lá fora que eu desconheço!
Os autocarros a passar, as pessoas a deambularem de um lado para o outro, as luzes dos carros, os sons e os cheiros (sons e cheiros que a nossa inteligência humana é inferior em relação a outros seres)...
Noutros animais percebemos que existem capacidades perceptivas que nós, arrogantemente, desprezamos.

Beijos,
Zorze
Anónimo disse…
Mais um belo texto!
Como vai o livro?
Está para breve?

Um beijinho
Lagartinha de Alhos Vedros
Diogo disse…
Lembra-me alguém que passou a existência a ver televisão. Triste.

Beijo
Ana Camarra disse…
Mugabe-O Livro tem de esperar pelas férias...

Zorze-Gosto de Janelas e gosto de olhos e dizem que os olhos são a janela da alma.

Lagartinha-Talvez precise de ti, para me ajudares.

Diogo-Este texto é dedicado a alguém que conheci que me era familiar, que nunca saiu para ver o mar...

Beijos
Fernando Samuel disse…
Enfim, libertou-se...

Um beijo.
Ana Camarra disse…
Fernando Samuel

A verdadeira uma mulher doce que sofreu com a tirania de uma familia preconceituosa e ultra católica, que nunca a deixou viver ou sendo mais correcta, tornou-lhe a vida num verdadeiro inferno.
No entanto era uma mulher doce.
Descobrimos mais tarde que todos aqueles ultra católicos tinha "rabos de palha".
Quando tomou posse da sua vida morreu!
Viu o mar uma vez, porque uma das minhas tias a levou contrariando toda a gente, para passar uns dias de férias, parecia uma menina pequena!
O Diogo fala na TV mas a esta aos cinquenta e tal anos controlavam o que via na Tv especialmente para não ver novelas, que eram escabrosas....

beijos