Olhos Negros

Há algum tempo atrás falei dos meus meninos perdidos.
De há duas décadas para cá que me vão passando pelas mãos e pelo coração várias crianças, indesejadas, rejeitadas, mal amadas, mal tratadas.
A principio chegava a casa e propunha ao meu companheiro trazer para casa cada um daqueles meninos que se agarravam a mim com uma fome de colo, ele explicava-me que não podia ser, que não poderíamos fazer tal coisa, de facto não podíamos por muitos motivos.
Muitas histórias ainda me doem, muitos cruzam-se comigo, já adultos e cumprimentam-me alegremente, outros perdi-lhes o rasto.
Ontem cruzei-me com uma, podemos chamar-lhe Rafaela.
Quando a conheci a Rafaela tinha 3 anos, era uma mulatinha de olhos enormes negros, lindo, de cabelo aos cachos, reguila, esperta.
O pai estava preso, tráfico de heroína, a mãe tinha a Rafaela e mais três filhos, sendo que dois tinham um progenitor e a Rafaela e o irmão outro.
Viviam num pátio retirado de qualquer filme neo-realista, com umas espécie de habitações, escuras, de divisões minúsculas e interiores e uma cabine com uma sanita para todos.
A Rafaela cheirava mal, tinha, piolhos, passei uma tarde com a enfermeira da Saúde Escolar, uma mulher imensa, alta loura de rosto e formas quase quadradas que escondiam uma ternura de avó, a tirar-lhe os piolhos, champô apropriado comprado com o nosso dinheiro, pois claro, loção, amaciador. A Rafaela não queria cortar o cabelo.
Conseguimos que fosse para um Jardim-de-infância, arranjámos subsidio para as refeições, roupa, a Rafaela por vezes usava sandálias de Inverno.
Revelou-se esperta e vivaça, corria para mim e pendurava-se no meu pescoço.
A Rafaela tem 17 anos.
Ontem cruzei-me com ela no supermercado, alguns piercings, um companheiro com ar pouco limpo, uma gravidez, e um menino, que mal anda de olhos imensos negros e lindos como os dela.

Comentários

TM disse…
Dizem-nos que não podemos mudar o mundo e então nós tentamos mudar pequenas grandes coisas...
Nem sempre o sucesso dos nossos esforços é aquele que desejavamos, mas não será por isso que deixamos de tentar...
Maria disse…
Caraças... vou ali e já volto.
Fernando Samuel disse…
E eu vou com a Maria...

Um beijo.
Maria disse…
Voltei, mas sem palavras para deixar.

Apenas um enorme abraço, e um beijo...
mugabe disse…
Sem palavras..!!!

Abraço!
Anónimo disse…
Os seus posts deixam-nos sempre suspensos de um final que nos apunhala a consciência e deixa, simultaneamente um sorriso de felicidade estampado no rosto. Magnífico, Ana!
Diogo disse…
Uns tentam ajudar (por exemplo, tu), outros esforçam-se a tramar (por exemplo, o «nosso» primeiro-ministro).

Beijo
Ana Camarra disse…
A todos

Existem muitas Rafaelas na minha vida!
Alguns conseguiu-se dar o salta e serem adultos inteiros, á custa da carolice e em penho de algumas pessoas onde tenho orgulho de estar incluida.
Sem meios, sem apoios, sem estrutura.
Continuam a existir muitos meninos destes na minha vida, a maior alegria é assistir os que se deram bem, as Rafaelas dão-me sempre um murro no estomago.
Se por vezes não conto mais histórias é porque me doem muito.

Obrigado pelo vosso carinho!
Beijos
anad disse…
Que texto tão inspirador. que som tão bonito, O teu blogue é sempre uma delícia.
Vou para a Madeira este fim de semana, depois faço o relatório. Sabias que tive na Áustria, foi óptimo.
Beijinhos
Anad
Zorze disse…
Ana,

És uma verdadeira Amparadora Intrafísica. E das melhores...

Uma parte da tua Proéxis em que mostras a competência do Ser de alto nível que és.

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
Anad-Boa viagem!

Zorze-Parece-me que isso é elogio, espero eu.

Beijos