Esses não!


Desde de pequenita que sou contestatária, inconformista, isso aliado ao facto de comer de muito mau grado sopa valeram-me a alcunha da Mafaldinha, numa homenagem da qual fico orgulhosa.
As injustiças sempre me incomodaram mesmo aquelas que nada tinham a ver comigo, incomodava-me por exemplo a Professora no Colégio fazer vista grossa ao rol de asneiras e diabrices do filho do senhor doutor, do filho do dono do stand de automóveis, enquanto um colega, filho de uma continua lá do colégio era brindado com bofetadas de fartura por tudo e por nada (hoje é dentista e gostava de saber o que ele faria se a apanhasse na cadeira do consultório).
Por exemplo, não gostava de ir ao Circo, faziam-me impressão aquelas crianças pintalgadas mas muito magrinhas, havia um ar de miséria dourada naquilo tudo, pensava onde dormiriam, como viviam em tendas e roulotes a cair, nos dias de chuva e de vento.

Em pequena vivia angustiada com essas coisas e com outras, com não poder cantar em público certas músicas que me ensinavam, com amigos que apareciam a meio da noite em sussurros, saiam lá de casa de madrugada, com abraços fortes, olhos rasos cheios de lágrimas, a gabardina do meu pai vestida, e aquela palavra “Adeus Camarada, tem cuidado!”, haviam amigos de sempre que também desapareciam, um silêncio que se impunha quando se ouvia “Apanharam o….”.

A determinada altura perguntei porque é que um amigo da família estava preso, foi-me dito que estava preso porque não queria a Guerra, porque queria que todos pudessem falar e dizer o que sentiam, achei logo que aquilo não era justo.
Também não achei justo a PIDE entrar em casa dos meus tios de madrugada, dizendo que era desta que o meu tio iria preso, porque tinham uma denuncia, lembro-me de perguntarem “E esse quarto?” o meu tio respondeu “Está aí a minha sogra e a minha sobrinha, uma velha e uma criança”, não interessou, eu já estava na cama da minha avó assustada com aquilo tudo, saímos e assistimos a tudo ser revirado: brinquedos, roupas, colchões, os discos espalhados (O Cavaleiro sem Medo em single tínhamos de o virar para ouvir o resto da história, A Menina do Mar em LP narrada pela Eunice Muñoz), apetrechos de cozinha, a caixa da costura, os meus cadernos da escola, as caixas dos Legos, os livros…
Horas depois não tinham encontrado os “tais” livros, vociferaram meia dúzia de patacoadas sobre a colecção completa da Mafalda, fizeram menção de os levar, lembro-me de dizer baixinho “Esses não…”
Ainda hoje dentro de mim digo muitas vezes “Esses não!”, quando ouço ou assisto a certas coisas digo cá dentro “Esses não!”. Mas não digo só cá dentro, digo de todas as formas que sei e posso, a última coisa que quero é ser conformada, já como sopa, até para dar o exemplo aos meus meninos, mas conformada não….

Comentários

Anónimo disse…
Soberbo. Dos melhores textos que já li por aqui.
Tocou-me especialmente a história de entrarem em casa do teu tio, não dá para imaginar o que sentiste.
Anónimo disse…
Sei que nunca te conformarás com nada que seja injusto !!

Abraço!
Anónimo disse…
O conformismo é o reconhecimento da derrota.Não podemos resignar-nos e pensar que não há alternativa.
Anónimo disse…
Tão lindo aninha!
Correram-me lágrimas e senti "este filme eu já vi" não nos apresentem uma versão moderna.
Não nos conformamos nunca!
Um abraço aninha!
Anónimo disse…
Parece que ainda estou a vê-los entrar, não no meu mas no quarto ao lado, o do Ângelo que mais tarde haveria de desempenhar papel importante explosão e destruição dos helicópteros na base de Tancos.

Abreijo inconformado.
Zorze disse…
Ana,

Tenho para mim que não és um Ser conformista, principalmente com injustiças.

A veia de Mafaldinha é enternecedora.
"Esses não!", se eu lá estivesse rachava-lhes a cabeça ao meio.

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
AP-Senti medo, claro!

Mugabe-Só se ficar taralhouca!

Carlos-Principalmente quando sabemos que a há.

Lagartinha-Andam a querer andam, mas não deixamos, pois não?

Salvo-Ainda temos memória!

Zorze-Eu tinha 6 anos, Zorze, 6 anos!

Beijos
Anónimo disse…
Ana,

De entre várias coisas desses tempos, recordo duas:

Eu perguntar aos meus pais o que era um símbolo que vira pintado numa parede. Era uma foice e um martelo. A minha muito assustada, disse-me que me explicaria em casa e para não voltar a repetir a pergunta na rua. O meu pai interferiu e explicou-me perante o olhar aterrorizado da minha mãe que aquilo era um símbolo político e qual o seu significado, ficando o resto para ser explicado em casa.

A outra, ocorreu com o meu Tio, aquele que muitos comentários faz também no meu Blog. 14 anos mais novo que a minha mãe de quem é irmão, tinha ele 17 anos, com os meus pais já casados, pediu para o meu pai lhe emprestar um dos livros da considerável biblioteca que existia lá em casa. O meu pai disse-lhe que sim, tudo o que lá existia era cultura e para ler, mas pediu-lhe que tivesse cuidado com a utilização do livro em público, pois tratava-se de uma obra proibida pelo regime. Era o Crime do Padre Amaro.
Com a irreverência normal daquela idade, o meu Tio exibiu o livro no café.
Passados dois dias, um importante sacerdote da diocese, hoje um importante Bispo da nossa Igreja, assíduo da casa de meus pais, abordou o meu pai, pedindo-lhe para qeu avisasse o meu Tio, pois a PIDE, já sabia o que ele andava a ler e, como tal, deduzia os hábitos de leitura dos meus pais.

Enfim!...

Tretices solidárias para ti.
samuel disse…
Extraordinário!
A quantidade de livros e discos do Zeca (e outros), que tivemos que "repôr"...

Abreijo
J. Maldonado disse…
Gostei muito deste post. :D
Agora compreendo a tua faceta inconformista... ;)
duarte disse…
sabes que mais ana, eu digo:
NÂO! NÂO e NÃO!
abraço do vale...
é sempre bom passar por aqui já vou em bob dilan(no avante hei-de cantar esta).
Fernando Samuel disse…
Parece que os estou a ver... ali mesmo à minha frente, medonhos, horrendos...

Um beijo.
Ana Camarra disse…
Portaria-Mal disposta não, mas vou lá.

Tretoso-è bom que essas memórias não se esqueçam, porque o fascismo existiu!

Samuel-de tantos, lá em casa escondiam-se nas capas de discs do conjunto António Mafra e no Maria Albertina….

Maldonado-Pois, tinha de vir de algum lado!

Duarte-Quantas as estradas te o homem que trilhar…

Fernando Samuel-Eu também nunca mais os esqueci.

Beijos