Ao redor de Ana

Já era Ana antes de ter nascido, o meu pai tinha decidido que sim, era uma rapariga e Ana. Na época nem em ficção científica se descobria o sexo dos bebés por nascer, havia palpites de acordo com o formato da barriga das grávidas, mas certo era esperar pelo momento em que um novo ser, ainda assustado, com o primeiro sopro de vida, chegasse saído do ventre materno.
E foi assim, comigo acabadinha de chegar a este mundo ainda de cordão umbilical e coberta de mucos variados que o meu pai irrompeu pela sala de parto, pegou-me e beijou-me. Perante a indignação geral, porque na época o parto era coisa estritamente feminina e não era hábito ou aceitável que o pai estivesse presente.
O meu pai escolheu o nome por vários motivos, fácil, pequeno, a menina iria aprender a dizer o seu nome rapidamente.
E assim foi, uma rapariga, Ana, com a cara chapada do pai, que construiu múltiplas cumplicidades com ele, a música, os ideais, o mar, o cinema, os livros, uma certa forma de estar e ser. Dois grandes amigalhaços, mais que tudo.

Os únicos homens da minha vida de quem gostou foram os netos! Outros foram tolerados.
Se eu tenho o síndrome do ninho vazio, sei que o meu pai o teve muito mais, colmatámos isso, estando juntos todos os dias, no final do dia de trabalho, falando de tudo, mesmo tudo.
Numa das últimas conversas pouco sérias que tivemos, eu e ele, falámos do meu nome, estávamos na azafama natalícia, eu tinha de escolher a prenda da minha mãe, da minha irmã e dos meus filhos, no final a minha.
Escolhi uma gabardine, acabou por dizer o costume “Se para tua mãe e para tua irmã escolhemos uma coisa em ouro, para ti é a gabardine porquê?” “Porque me faz mais falta!” “És sempre a mesma coisa! Queria oferecer alguma coisa que fique!” “Eu fico com a gabardine” “Já viste que Ana ao contrário é Ana?” “Pois, o contrário de mim sou eu na mesma!”
E é assim mesmo, o contrário de mim sou eu!
Pouco tempo depois, pouquíssimo, entrou na espiral alucinante de cirurgias, cateteres, hemodiálise, onde todos os dias falávamos na mesma, até quando ele parecia não ouvir…
A gabardine tem 11 anos e continua lá em casa, ficou….

Comentários

Rui Silva disse…
Esta foi uma inspiração profunda,sem duvida.
Anónimo disse…
Bom...Ana, agora fizeste-me emocionar....vá, um abraço!
Anónimo disse…
Ana,

Retribuo a tua visita e deparo-me com uma homenagem profunda e sentida.

Está um espanto de simplicidade e objectividade.

tretices grandes para ti.
Anónimo disse…
Felizes aqueles quem guardam em si um pouco dos pais.

Abreijos.
Anónimo disse…
Há várias formas de manifestar o amor. Essa é extraordinária.
Lembra-se do tempo em que se tentava a divinhar o sexo dos bebés na barriga da mãe, através de uma aggulha rodando na palma da mão da grávida?
duarte disse…
belo testemunho...
Guarda esse cantinho , que o teu pai criou no teu coração...esse sim fica.
abraço do vale
Diogo disse…
Vi pela primeira vez o meu filho, durante uns segundos, quando saiu da sala de partos deitado ao lado da mãe. Ele olhou para mim com uns olhos azuis (hoje são verdes). Não se pode descrever...
TM disse…
E mais que a gabardine ficou tudo o resto... as memórias.... os sentimentos... :)
samuel disse…
Pudesse toda a gente ter uma "gabardine" assim...
Muito bonito!

Abreijos
Zorze disse…
Ana,

Muito bonito.
Os objectos têm um valor de mercado, mas, importante é o valor que nós lhe damos proporcionalmente ao que significam ao nosso corpo de emoções.
É uma valoração só nossa, individual e íntima.

Beijos,
Zorze
Mário Pinto disse…
Ana,

Uma gabardine capaz de resguardar mais que matéria.

A revolução é hoje!
Ana Camarra disse…
Conde-E Ana fiquei.

Mugabe-Obrigado pelo abraço.

Tretoso Mor-Está tal e qual como foi.

Salvoconduto-Eu então tenho a mania de guardar coisas de pais avós e bisavós.

Carlos-Fizeram-me essa da agulha, também.

Duarte-Guardo com muito carinho.

Diogo-A primeira vez que os vemos, assim cara a cara é fantástico.

TM-Ficou muita coisa, uma falta também.

Samuel-Felizmente tenho.

Zorze-Tenho objectos sem valor comercial nenhum dos quais não me desfaço.

CRN-È isso mesmo.

Beijos
Fernando Samuel disse…
Essa gabardine és tu... e tu és ela...

Um beijo.
Menina Idalina disse…
Ana: É sempre bom um doce complexo de édipo.
Agora adorei a da gabardine porque tal como o doce complexo de édipo, resguarda e protege do mau tempo .
Simbolicamente simbólico .

Conseguimos sempre , quando o lado esquerdo do peito funciona, ver para além das palavras.
Anónimo disse…
olá vim dar uma espreitadela ao teu blog e parece-me interessante!!!Abreijos...
LuisPVLopes disse…
A gabardina, ficou!... O seu comprador, está na memória viva de quem o conheceu, sempre!... Uma outra gabardina que fisicamente, não pôde ficar, mas que te protegeu durante quase 30 anos.
Eu acredito, que estamos aqui de passagem, nada é eterno, nada é nosso, nem mesmo o nosso corpo, assim, resta-nos aceitar e acreditar que somos mais qualquer coisa, algo que nos transcende e muito.
Sei que de pouca consolação te serve assim a frio, mas eu acho que ele jamais se separou da família, apenas devolveu a matéria que a mãe natureza lhe emprestou tal como a todos nós, para que fizéssemos um bom uso dela e, eu acho que ele o fez.

Xôxos

Ouss