Mais um dos meus antepassados




Incontornável a figura do meu Tio Artur, tio-bisavô, aliás, irmão, mais velho da minha bisavó, não a conheci mas conheci-o a ele, quanto à sua longevidade só justificável com aquele velho ditado “O que não mata, engorda!”
O Tio Artur era um velho lindo!
Olhos azuis, límpidos, bigode e cabelo branco de neve, um sentido de humor fabuloso, e ria por inteiro quando eu entrava no Lar onde estava na condição de indigente, porque sabia que dentro do saco transportávamos para além de alguns produtos de higiene, umas peças de fruta ou frutos secos, ou biscoitos, material de contrabando.
Isso mesmo, com 6 anos eu e a minha avó fazíamos contrabando para dentro do Lar, levávamos a cada visita ao Tio Artur, um frasco de sais de fruto cheio de aguardente e um maço de tabaco, as visitas eram dia sim, dia não.
Eu acho que no Lar sabiam, mas fingiam que não.
O Tio Artur foi ali parar no final de uma rica vida pobre…Estranho?!
Passo a explicar, o Tio Artur teve um problema qualquer quando muito jovem, daqueles problemas incompreensíveis para alguém de 6 anos, hoje sei que foi uma doença venérea, apanhada com uma prostituta de ocasião, que por vergonha foi camuflada até não existir remédio e parte da sua masculinidade ser amputada.
O Tio Artur passou assim a fazer o que lhe dava na real gana, nomeadamente viver sem regras e beber o que lhe apetecia.
Então tinha um esquema simples, ia andando parava em Setúbal ajudava a descarregar traineiras ganhava uns tostões, bebia uns copos, continuava caminho, parava em Alcácer apanhava arroz, bebia uns copos, dormia ao relento, continuava, fazia uma ceifa, apanhava azeitona, e assim sucessivamente, chegava a Silves visitava parentes e iniciava a jornada contrária até ao Barreiro.

Aqui chegado teve duas fases, na primeira acoitava-se numas barracas junto à Praça de Touros, mais ou menos onde está o recém inaugurado Fórum, assim que chegava a noticia corria e a irmã, Teresa, gémea da minha bisavó, aparecia-lhe com cabelo ruivo e olhar flamejante, sem dizer nada, fazendo um gesto para que a seguisse. Pelo caminho a minha Tia Teresa ia pensando na desgraça que era aquele irmão, vagabundo, alcoólico, a fazer a família passar vergonhas, isso irritava-a, tanto que lhe aplicava de uns quantos em quantos passos sonoras bofetadas sem dizer palavra. Ele não ripostava!
Ficaram famosas estas sessões de bofetadas sem trocar palavras, Avenida da Bélgica (hoje Avenida Alfredo da Silva) afora.
O Tio Artur justificava a irmã dizendo que aquilo era uma vingança, porque em pequeno tinha tido a incumbência embalar as gémeas e tinha virado o berço, fazendo com que caíssem e aquela teria ficado eternamente afectada…
Mais tarde com o fim dessas barracas e da Praça de Touros dirigia-se a casa da sobrinha, minha avó, onde os vizinhos ocorriam a dar os restos para o Tio Artur, restos que ali comia ao mesmo tempo: sopa de feijão, pataniscas, torresmos, um resto de cozido, carapaus alimados… a fome que tinha era tanta que não importava.
Só lhe era imposta uma condição, tomar banho, e o banho era dado pelas sobrinhas netas, a minha mãe e irmãs, mas a minha mãe levava essa tarefa muito a sério, esfregando com sabão e uma luva de crina o velhote submerso na banheira, que gritava que o estavam a cegar, depois comia a tal caldeirada de restos da vizinhança, limpo e com uma roupa lavada, ficava uns dias até que reiniciava o circuito.
Era preso muitas vezes, por vagabundo, quando a família era avisada o meu Tio Mário (o que me iniciou nos Fados) dirigia-se à janela do “50”, a prisão do Barreiro, onde baixinho chamava pelo tio Artur, tendo como resposta um senhorial “Quem é!?”

Tocava bandolim, que empenhou milhentas vezes, que desempenhava quando colocava umas meias solas, porque era sapateiro, embora a sua veia vagabunda não lhe permitisse assentar.
Tantas vezes empenhou o bandolim, que lá ficou.
Gostava de beber, contava-me histórias das suas caminhadas, dormiu ao relento a maior parte da vida e morreu assim velho e amado.
Tive o privilégio de o ter conhecido e de ter criado com ele estes laços cúmplices.
Quando bebo um copo ou começo a falar em correr mundo ou qualquer uma dessas coisas a minha mãe diz logo “Ai a veia do Tio Artur!”
Com muita honra!

Comentários

Anónimo disse…
A última frase diz tudo !
Um grande abraço!
Rui Silva disse…
Há pessoas assim,que mesmo sem as conhecer eu sinto orgulho e inveja...será normal.
Anónimo disse…
Anda uma pessoa ocupadíssima com assembleias para eleição de delegados e almoços de comemoração da Revolução de Outubro e tu aqui no teu canto,escrevendo!
Como sempre coisas lindas que me comovem e por vezes me remetem para as minhas próprias recordações.
Eu tive um tio avô, que por ser republicano, se fez maltêz. Tanto teve que fugir de terra em terra, que se lhe perdeu o rasto.
Soube-se depois, muitos anos depois, que havia sido preso e enviado para os Açores.
Não voltou, ficou uma viúva, pois de preto de vestio até morrer e dois filhos que´do pai tinham uma vaga imagem.
Vidas, amiga Ana!
Dia 19 na Baixa da Banheira, Jantar com Jerónimo de Sousa.
Lá estarei!

Abraços da Lagartinha de Alhos Vedros
Ana Camarra disse…
Mugabe - Pois são estas almas livres que passam pela nossa vida e apesar de tudo deixam assim umas sementes de liberdade!

Conde-Acho que sim , é normal, também tenho esse apelo vagabundo.

Lagartinha-As histórias de vida são assim entrelaçadas, como cordas ou cestos.

beijos
Anónimo disse…
Outra história de vida com toda a pujança que tu lhe imprimes e que me comovem pela ternura, obrigada!

Também tive um tio assim errante... que se perdeu nos labirintos da vida.

Beijos

Ausenda
Anónimo disse…
Tinha uma coisa a favor dele, era Livre.
Zorze disse…
Ana,

Isto anda muito evocattio.

Ele é dos meus. Até arrebentar.
Ser livre ou livre de ser.

Beijos,
Zorze
Ana Camarra disse…
Ausenda-Toda a gente teve um tio assim, quem não teve, devia de ter tido.

Salvoconduto-Era muito!

Zorze-As memórias também fazem parte do nós.

beijos
LuisPVLopes disse…
Conservado em álcool, pois é um bom conservador!
Livre!... De facto o era!... Mas pelo acaso de uma doença, que não lhe permitiu, a coragem de constituir uma família.
Eventualmente um desgosto que morreu com ele, pois ter filhos, é renascer e, ver-se projectado no futuro, com uma história de vida e amor, mas acima de tudo, uma grande coragem.

Xôxos

Ouss
Fernando Samuel disse…
Com muita honra?: nem era preciso dizeres, estava «escrito»...


Um beijo.
Eric Blair disse…
belo conto, grande anarquista.
PDuarte disse…
o teu tio Artur era por certo um poeta.
poderia até nem saber fazer simples quadras, mas era um poeta.
eu acho que ele foi muito mais feliz que nós.
Ana Camarra disse…
Sensei-Mesmo com alto consumo de álcool nunca o vi alterado, também nunca deu forma a esse suposto desgosto, era muito amado.

Fernando Samuel-Pois estava, se não tivesse este carinho todo por ele nem o recordava!

Eric-Era o máximo o Tio Artur!

Pduarte-Gosto de pensar que ele foi feliz, assim sem amarras, como um barco á deriva.


Beijos