Pode ser



Não sei se me consegues ler nessa luz difusa, que quando tudo o que resta são palavras, escritas em papéis que que não me lembro onde guardei, num sonho demasiado confuso, coisas que não disse, também já não digo, morrem escritas em sonhos confusos, na areia da maré baixa, na humidade de um vidro, em conversas solitárias com nó na garganta e em papéis que não sei onde guardei, se os rasguei, se os coloquei numa garrafa se os lancei ao vento.
Não interessa, ficam onde ficaram, pode ser que sejam descobertas por um arqueólogo emocional, numa escavação onde alguém procure fragmentos de outras coisas, restos de vidas, de trapos, de cacos, telhas, fundações, e no fim encontrem assim as palavras que deixei, sem saberem de quem foram, tomando-as como suas, sem saberem para quem e quando foram escritas.
Pode ser que cheguem dentro de uma garrafa que vá em marés, cheguem a uma costa e sejam abertas, por alguém que tente traduzir cada letra, cada hesitação, cada desenho feito na margem, pode ser que um pássaro as encontre e leve a palavras para fazer o ninho, pode ser que uma planta cresça com as raízes assim alimentadas, por palavras, e floresça e dê fruto, pode ser que um vento as leve, e caiam onde façam falta como gotas de chuva em terra seca.
Não sei se me consegues ler nesta luz difusa, neste nicho, nesta sombra, não sei se me consegues nesta tempestade, neste dia ofuscante, neste sorriso guardado, pode ser que consigas…


 (foto de Carlos Matos)

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