Afinal não
vou com uma amiga no barco vou com outra, ninguém substitui ninguém, gosto das
duas, e afinal há coisas que se acertam sozinhas na vida, quando me despeço de
uma a outra chega no barco que acabou de atracar e temos duas estações de Metro
para falar, por a escrita em dia.
Está
vento, forte que semeia chapéus-de-chuva partidos pela cidade e abana os ramos
das árvores, e chuva fria, e levo no saco que fiz um casaco de malha para uma
emergência, a lancheira, o chapéu-de-chuva retráctil que decidi que ali vai
ficar, fico só pelo anorak e o chapéu impermeável para a cabeça, que ainda
assim seguro com uma mão.
Há duas
pessoas na paragem, depois chegam mais, até a minha pequena companheira de
viagem que não nos víamos há uns dias, entre pascoas, para quem trago cromos
com dinossauros, fica feliz, há outra senhora que ao ver diz: “Olha tenho aqui
disso e não sabia para o que era, toma querida!”
Entre
resmungos sobre os trinta minutos de atraso do autocarro, a alegria dos cromos,
a chuva que escorrega entre os vidros de um dia cinzento e agreste, a conversa
casual com a senhora na minha frente que tem medo de me encomendar com a
bengala e faz bonecas de trapo, porque nem tem ninguém à sua espera e assim faz
bonecas e dá, faz bonecas e as roupas, acaba por contar a sua vida, esclareço-a
sobre a loja de tecidos melhor, e até indico caminhos e ruas, e fico a olhar os
canteiros mais coloridos do que estavam, e ela chama-me “menina”.
E quando
saio seguro o chapéu com a mão para não voar, nos metros da paragem ao trabalho
há meia dúzia de caras familiares que me cumprimentam, entro e recebem-me com
um sorriso e fico feliz!
Dispo o
casaco e a chuva, o chapéu e o cachecol, mergulho entre muitas coisas, descubro
um escritor desconhecido para mim, vejo chapéus viraram lá fora, cair granizo, escolho
trechos de livros e arrumo outros no local certo, na hora certa chegam
voluntários e pessoas de bengala para um chá comunitário, gostam do espaço, até
do convívio, lá fora há turistas rosados com calções que olham espantados para
o ar arrepiado e friorento que temos, há uma rapariga que treme de frio porque
vestiu a roupa que o calendário indica, está elegante com saltos altos abertos,
camiseiro, cabelo esticado, os lábios roxos, encolhida a fugir à chuva!
Eu visto o
casaco, venho quente e leve na mesma, apanho as mesmas caras no autocarro,
apesar da chuva cheira a Primavera, ainda não é noite cerrada, as pedras de
basalto brilham enfeitadas por carris prateados do eléctrico, e de manhã os
canteiros vão estar mais coloridos, com as flores cheias de cor porque já há
andorinhas nos beirais.
Foto de Carlos Matos
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