“Do rio que tudo arrasta,
diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem.”
Bertold Brecht
Os cravos são um símbolo,
aconteceram, o resto não aconteceu por acaso, foram décadas e gerações
comprimidas, séculos, no meu universo familiar há histórias, muitas, de
miséria, de crianças que nunca tiveram direito à infância, de gente que se teve
de calar, de mini revoluções que iam mudando pequenas coisas, pequeninas, mas
era um passo.
Foram gerações de escravos com
outro nome.
De soldados em guerras que não
escolheram, de peões em jogos, até à exaustão, de cada tortura, cada censura,
cada degredo, cada soldado.
Lembro-me de fragmentos: as
músicas que aprendia em picnics, com frequência selecionada com o aviso para as
nunca cantar, em pessoas que passam a noite lá em casa entravam no escuro para
sair de madrugada, com outra roupa, da PIDE bater de madrugada à porta e entrar
no quarto onde eu estava e revirar tudo.
De pessoas, amigos, pais de
amigos, que estavam presos, de retratos enormes de soldados em casas
eternamente de luto.
O que foi plantado naquela
madrugada foi uma semente, dela nasceu um cravo rubro como símbolo, mas as
sementes saem de outras plantas, mesmo na sua morte, mesmo no seu amago e cada
semente plantada precisa de várias coisas.
Houve calor, houve alegria, até
floração.
Murchou, murcharam-na, mas deixou
sementes.
Continuam a existir escravos com
outro nome, mas deu-se um passo, pequeno talvez, e hoje sabem que são escravos
e esse é passo fundamental para se libertar.
Continuam a existir primazias, desigualdades,
castas e jogadores que jogam com a vida alheia, que condicionam, apertam e
comprimem. Mas agora até o sabemos, dizemos, é o primeiro passo, pequeno e
gigante para mudar.
Continuam a existir censuras, e
até continuam a querer formatar o que pensamos, queremos gostamos, mas hoje até
sabemos se quisermos e podemos dizer, gritar e escolher.
Hoje celebrei pequenas coisas, um
abraço colectivo, a alegria de alguns me reverem, a quase vergonha de outros em
encararem comigo, os que viraram a cara para outro ponto, os que nunca apareciam
e hoje de repente lembraram-se que Abril se festeja, os ausentes, por acaso não
tive cravo, eram poucos pelos vistos, almocei num almoço tradicional, conversei
e no fim ao sair estava um cravo misturado com lixo numa floreira:
“Isto assim não cresce!
Porra, não cresce, é de plástico!
Valu, até os cravos são
artificiais…
Anocas, deixa, não cresce mas não
murcha!”
“Quando eu finalmente eu quis saber
Se ainda vale a pena tanto crer
Eu olhei para ti
Então eu entendi
É um lindo sonho para viver
Quando toda a gente assim quiser
….
E sempre que Abril aqui passar
Dou-lhe este farnel para
o ajudar
Eu vim de longe De muito longe
O que eu andei pra aqui chegar
Eu vou p'ra longe
P'ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos pra nos dar” José Mário Branco
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