Retratos – Marieta dos sem rosto

Foto de Carlos Matos

Marieta é educada e está naquela idade indefinida, deve ter passado dos quarenta mas apesar do cabelo branco, das roupas fora de moda ou sem formato, usa quase sempre batom garrido.
Pelos olhos inquietos, pela agitação quando tem esperar algum tempo, saltitando de um pé para o outro, por uma certa obsessão com certos números ou localizações, percebo sem aviso que há qualquer coisa, no entanto tem um ar de menina algures que nos dá vontade de proteger, é isso que o meu colega já fez uma ou duas vezes, com ar quase paternal.
Vem todos os dias, diz bom dia ou boa tarde, pede as coisas como se tivesse ensaiado, espera as respostas, os objectos, as indicações.
Hoje trás uma blusa de malha verde, um anorak, uma saia escura e sem forma, um batom rosa claro, e os olhos mais inquietos e espera que eu esteja livre para falar comigo sem interrupções, sem saltitar, algures em mim há alarmes que tocam e ao mesmo tempo a preocupação.
Desta vez fala com espontaneidade, diz que é perseguida desde criança, ouve vozes, duas mulheres e um homem, parecem pessoas, mas sabe que não são, nem têm rosto, não sabe se são espíritos ou células malignas que abriga no seu corpo, também me diz que sabe que não são reais mas que ao mesmo tempo são, porque os escuta, dizem coisas ordinárias, sussurram, provocam-na, que já foi a todo o lado, a todas as autoridades, nada podem fazer e ela até percebe, ninguém os escuta só ela, diz-me que a provocam de tal forma que por vezes reage, acaba por lhes ter de gritar, no autocarro, no elétrico, no supermercado, que isso acaba por incomodar as restantes pessoas, mas que lhes tem de os por na ordem, pedir que se afastem que deixem em paz, que fica com falta de ar e a tremer, que os atura desde menina, sempre piores, esses sem rosto, mas que se sente bem ali e tem medo que entrem…
Isto é dito de um folego só, com as mãos pousadas na minha frente, olho-a nos olhos, o meu rosto ao nível do dela, pouso as minhas mãos sobre as suas, digo-lhe de uma forma calma:
“Acalme-se Marieta, aqui está segura, está entre amigos, aqui eles não entram, eu vou estar aqui e vai estar tudo bem!”
Não sei que espirito me ensinou, sussurrou, inspirou, de repente acalma-se, relaxa-se, sorri e diz “Que bom, obrigado!”
Vai para o seu local favorito, não a ouço murmurar sozinha, quando se despede é com um sorriso e até amanhã.
Parece que recuei uns anos e que disse aos meus filhos, que o monstro debaixo da cama foi para outro lado porque o varri e passaram a dormir sem medos.
Espero que a Marieta durma sem medo…por outro lado acho que se convenceu que eu existo, que a defendo e eu sinto-me aceite também.



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