Diário de mudança – Dia vigésimo terceiro

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O caminho faz-se bem, apesar do tempo e dos três transportes ou do trânsito, já apanhei dias de sol e de chuva, a saída tardia e iniciar de madrugada, invariavelmente o barco é ponto de encontro de alguém conhecido, o metro também, o autocarro já o é.
De carro começo a perceber as escapadelas e voltinhas, a pé mais ainda.
Conforme seja o autocarro há caras que se repetem, já cumprimentam, e há até a companheira de viagem na ida quando pego mais cedo e na vinda quando saio mais tarde, sete anos, resposta pronta, e as suas trancinhas africanas num rosto sorridente.
Hoje lá estava, gritou quando me viu “Trouxe as cartas!”, as cartas de dinossauros que esconde e me pergunta a viagem toda ou pelas características ou pelo nome conforme a leitura soletrada que faz, hoje deu-me um abraço e usou o meu chapéu-de-chuva enquanto esperamos debaixo de uma chuva miudinha, faz o caminho com a avó, fica numa escola com ensino artístico, a avó tem um lenço na cabeça e um ar paciente, ela é um raio de sol mesmo nos dias de chuva.
Depois há o Bairro, já percebo porque lhe chamam assim, misturam-se drogarias que parecem saídas do Pátio das Cantigas com lojas mais sofisticadas, retrosarias atulhadas com caixinhas e senhoras velhotas a vender as coisas, com lojas de tecidos de todas as qualidades, devidamente informatizadas, o gourmet e o local onde se comem pataniscas com arroz de feijão, a loja de lingerie quase em frente a outra que vende batas de andar por casa e cuecas de “gola alta”, e prédios recuperados, novos, alguns que transpiram luxo moderno outros o charme antigo de janelas especiais, frontarias de azulejo ou figuras esculpidas.
Há carros do último modelo mas também há o senhor da motorizada velha que até já cumprimenta e me conhece, há velhas Valquírias de pó de arroz apelidos longos e golas de pele e gente descontraída, cabelo com rastas e o francês transplantado para ali que usa as filhas pequenas como tradutoras e já saúda na rua “Bom jour, Ana!”.
E há o trabalho, livros, pilhas, prateleiras, livros que chegam em cestos de plástico para serem separados, livros devolvidos ou usados no dia anterior, que se tem de colocar na prateleira certa no local exacto, livros que nos pedem, livros que pedimos e percorrem a cidade acondicionados em pacotes com protocolos que se tem de abrir, assinar registar e dar as voltas todas, há doações, tem de se ver um a um, classificar fazer seguir.
Há registos, contadores, programas informáticos próprios, leitores de códigos de barras, alarmes para os jornais e revistas, senhas de programas, computadores e tudo o mais, mas há gente.
Há gente sempre, os que estudam, os que simplesmente fazem daquele local diariamente uma espécie de segunda casa, os que brincam na sua zona, os que brincam e gatinham, os que brincam e já levam livros, os que brincam e jogam, os que brincam, jogam e lancham.
Há os que escolhem um autor e levam de seguida, todos os livros, os que só levam filmes, ou música, os que fazem uma mistura, o senhor que levava policiais e disse com um sorriso radiante: “Agora vou ler menos, só ao fim de semana, arranjei emprego!”. Recebeu as nossas felicitações e ficámos felizes.
Há exposições, aulas de teatro, sessões de poesia, Clube de Leitura, espetáculos, tudo ali, já apanhei em dias de chuva e dias de sol, há a Maria da Fonte, com as pistolas na mão, num jardim sereno, perturbado por gargalhadas infantis nos balouços, conversas de jardim entre velhos e sussurros de namorados.

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