Diário de Mudança Dia 1

Pronto os barcos já nem têm varanda, nem cave, chego cedo o suficiente para carregar o passe que nem é um cartão com foto, da mesma maneira que os bilhetes não são retângulos coloridos de papel sujeitos a picagem com alicate e pagamento de excesso em caso de revisor por se ir em primeira classe, não há classe.
É tudo electrónico com torniquetes ou acrílicos.
Chove muito, verifico tudo, tenho umas folhas com horários de autocarros e barcos e outras indicações, encontro um amigo mesmo antes de entrar no barco, o me primo, vejo mais três ou quatro conhecidos que nem deram por mim, conversamos de coisas prosaicas e coisas menos prosaicas, chegamos, separamo-nos ainda assim com cumprimentos.
Não vejo o Cais das Colunas ou se há senhoras a vender chapéus-de-chuva, morangos ou castanhas, é tudo de seguida, seguindo as setas que indicam linhas e estações, metade em escadas rolantes metade em escadas que temos de palmilhar, no metro existe wifi, portanto o telemóvel desata a dar apitos com mensagens de encorajamento e carinho, partilho o caminho entre duas estações com outra amiga, saio e procuro como se fosse turista a paragem certa do autocarro, no percurso tento identificar coisas e locais e conto o numero de paragens.
Há uma senhora com ar absorto mesmo sentada frente a mim e duas senhoras que discutem os acontecimentos da véspera do Colégio onde trabalham, há um homem que discute com o motorista, porque o autocarro anterior falhou, uma miúda que escuta música com os auscultadores e há finalmente a minha paragem.
Não chove naquele instante, atravesso o Largo grande, sigo para o andar que é suposto, estava combinado às 10 e apesar da chuva e do autocarro que falhou chego a horas, apresentam-me pessoas, oferecem-me café, e vou para o meu posto de trabalho no momento exacto onde o céu desaba, há um senhor que se preocupa e diz “A menina recolha-se um bocadinho!”, agradeço a gentileza e chego ao local.
Há uma recepção possível, apesar das obras de pintura, da reunião que se sobrepõe, há uma integração nas coisas, uma primeira aprendizagem, há algumas interrupções, há a pausa de almoço, partilhado, com direito a derramar um copo interinho e sumo de laranja, há o regresso e o café, e há que começar a aprender coisas novas, e aprendo, registo livros, aprendo cotas, passo cartões, disponibilizo computadores, respondo a pedidos, dou entrada e saída, e respiro livros, livros em francês, de matemática, de poesia, de culinária, infantis, de medicina, romances, biografias…
Há o quebrar do gelo, afinal eu e o colega que me ensina as lides temos coisas em comum, gostos musicais é músico e já tocou no barreiro e até temos amigos em comum.
“Ralha” comigo porque já fiz muito para primeiro dia, acaba por me mandar embora e já nem chove, as ruas estão com aquele cheiro a lavado e entre as nuvens, as árvores e os fios dos elétricos há um rasgo de céu azul, caminho com calma a familiarizar-me com aquela calçada, espero uns minutos pelo autocarro, há uma menina de origem africana cheia de trancinhas minúsculas com um olhar luminoso, há uns prédios lindos recuperados e outros lindos mas a cair, há uma estatua que eu nunca tinha reparado de um Neptuno meio submerso num jardim romântico que mostra o torso e parece que sorri só para mim, há uma senhora que vai de pé como se fosse uma penitência e suspira a espaços regulares, apesar de existirem lugares vazios, há o fim da carreira, há o túnel do Metro, e o barco que vai partir, as janelas sujas que ainda assim mostram o rio azul a combinar com o céu.
Há a escala de serviço na mala e não me dói a cabeça, despi a roupa pegajosa de sumo de laranja, talvez seja assim por ser o primeiro dia do resto da minha vida!

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