Comecei a trabalhar aos 19 anos, agarrei uma oportunidade na função pública, permitia-me manter contacto e trabalhar em certas áreas para as quais me sentia atraída: educação, animação, associativismo algum trabalho de integração social, estava a dez minutos de casa, o salário não era grande coisa, mas existiam um conjunto de pequenas regalias que incluíam a hipótese de me reformar ao fim de 36 anos de serviço e um sistema de saúde que funcionava, os descontos salariais apesar de muitos mitos eram iguais aos dos outros trabalhadores, naquela altura as médias de entrada para o ensino superior eram desmotivantes, amiúde quem conseguia entrar ia para faculdades longe de casa, num esquema diabólico que trazia algarvios para Lisboa, transmontanos para Évora e os outros para onde calhasse, as hipóteses de os meus pais suportarem tal coisa eram escassas, portanto agarrei a oportunidade.
Depressa de mais as coisas mudaram-se, lembro-me de me terem cortado a progressão na carreira, de me terem cortado parte do subsídio de Natal, de me terem reduzido benefícios médicos de me terem dado dias de férias em troca de aumentos ao nível da inflação, passei a minha idade adulta a esticar o pé à medida do lençol com muitas fases em que o lençol para tapar os pés deixa outras partes descobertas, vivi o drama do desemprego em familiares próximos directos, paguei ensino pré escolar privado devido a não existir público, ouvi o discurso da crise e dos sacrifícios de vários governos, de Màrio Soares a Cavaco Silva passando por António Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e José Socrates, ouvi as suas promessas eleitorais, ouvi coisas sobre o preço do petróleo, que parece que é sempre mais caro para este país do que para os outros todos, deixei de ter um sistema de saúde que funcione, mas também não tenho médico de família, também tenho neste momento a perspectiva de me reformar com 46 anos de serviço, a determinada altura a salvação era a entrada na União Europeia, que seria difícil mas depois era uma beleza, não foi, depois foi a entrada na moeda única, que era disso que necessitávamos para atingir o mesmo nível dos nossos parceiros, também não foi.
Sempre paguei os meus impostos, tanto aqueles que são sacados à partida como os outros, vivi o drama do desemprego em familiares directos, em amigos, em conhecidos, conheço o drama da precariedade, dos jovens licenciados que partem para servir às mesas de um outro país qualquer, dos professores com vida de nómada que nunca sabem onde vão parar, da antropóloga que trabalha na sapataria, tenho dois filhos no ensino superior, pago as propinas, os passes, as sebentas, compro os livros, tudo luxos, agora dizem que se precisa de mais um esforço nacional, que andámos a viver acima das nossas possibilidades e que são necessários mais sacrifícios, que existe uma crise que se propagou mundo afora, tal como as gripes e deve ter arranjado aqui o sitio ideal para se instalar, entretanto os sacrifícios são feitos, gente há que toma os comprimidos em dias alternados, só come peixe em dias da semana que tenham a letra “r” e bifes à segunda quarta-feira de cada mês, há escândalos diversos quase diários, em dias bons até mais que um, coisas com ministros, sucateiros, ex ministros, secretários de estado, bancos e outras, há escolas que fecham e disciplinas que vão acabar, falta de médicos, pessoas despedidas por email, empresas com lucros astronómicos isentas de impostos ou pelo menos aligeirados dos mesmos, regimes de excepção e outras coisas que tais.
Tenho-me desenrascado apesar de fazer parte desta geração, que tem estado sempre à rasca, mas não me conformo, e tu?
Comentários
Um beijo.
abraço amiga
Valeu bem a viagem até aqui...
Abreijo.