Visto isto e os factos já é sexta-feira. Sexta-feira, Sexta-feira, Sexta Feira…
Os pés doem-me, campanha, compras, montagem de mesas de voto, andar empoleirada a ocultar propaganda frente a Assembleia de voto, dia de Eleições, andar de um lado para o outro, telefonema “Já morreu!”, correr a consolar, abraçar, dar a noticia, voltar para o final das contagens, fechar Assembleias de voto, introduzir resultados, “Não penses em mais nada, agora! Não penses que ela levava muito a sério o acto de votar, que em Junho foi de andarilho como uma velhinha que não era, perante a consternação dos que não a viam há muito tempo. Que a última vez que falou contigo perguntou se era possível votar e disseste-lhe que não, não era.”, Sair, correr para mais abraços, mais avisos, saber como é que estava o tratamento das exéquias, chegar a casa deitar-me depois de um banho, não conseguir dormir até o sol começar a espalhar uma luz vaga pelas frinchas da persianas, dormir então, um sono pesado cheio de sonhos e sobressaltos, levantar, banho, comer, olhar absorta para um dente que me caiu, aos quarenta e dois anos, aquele pedacinho de mim morreu, ajudar “Vá mãe, tens de comer, vamo-nos vestir e eu ajudo, sim, levo-as de carro”, a chegada do corpo, pela primeira vez voluntariamente olho para um corpo sem vida, tem um ar de estranho repouso, parece que posso só abanar devagarinho “Acorda!”. O dia todo de pé, doze, treze horas, não sei, aparecem pessoas, conhecidas, amigas familiares, estranhos, “Os meus sentimentos”, sempre que me sento tenho uma mola, falta-me o ar, sento-me no fim da noite, volto para casa, banho, deito-me não consigo dormir, dores alucinantes nos pés, uma bolha, levanto-me, é impossível manter-me ali, passo pelos pés uma pomada, que diz “analgésico e anti inflamatório”, promessas vãs, vejo como se não visse, sem som, borboletas, pássaros, focas, escaravelhos, que acasalam reproduzem-se, morrem, caçam, sobrevivem. Levanto-me, visto-me, como, é de madrugada, ainda não é bem de dia, está um carro já parado, um conhecido de sempre, digo ao Diácono, “Pode ir, obrigado!”, o carro funerário, o transito, o cheiro enjoativo das flores, “Ficas cá fora com o miúdo, Ana?!” “Claro que sim!”, “Podes secar esta flor da avó, colocas uma folha por baixo, outra por cima e uns livros pesados, esqueceste da flor e depois fica seca e espalmada para sempre”, voltar, voltar mais vazia, deitar-me, “A mãe tem de descansar um bocadinho”, cozinhar, colocar a mesa, sentarmo-nos os quatro, deitar-me, dormir, sim dormir, sair, ocupar mãos e mente com trabalho, ocupar os pés a andar, campanha, andar, doem-me os pés, deitar-me numa marquesa, tirar fotos de dentro de mim, o médico franze o nariz, “Mais três, pequeninos, mas novos, Dª Ana”, penso que não é bem comigo aquela conversa, “Se tivesses que lhes dar nomes, Ana? Saudade, Cansaço e Esperança?”, compras, limpar a casa, fazer o jantar, deitar-me, dormir?!Já é sexta-feira! Doem-me os pés!
Os pés doem-me, campanha, compras, montagem de mesas de voto, andar empoleirada a ocultar propaganda frente a Assembleia de voto, dia de Eleições, andar de um lado para o outro, telefonema “Já morreu!”, correr a consolar, abraçar, dar a noticia, voltar para o final das contagens, fechar Assembleias de voto, introduzir resultados, “Não penses em mais nada, agora! Não penses que ela levava muito a sério o acto de votar, que em Junho foi de andarilho como uma velhinha que não era, perante a consternação dos que não a viam há muito tempo. Que a última vez que falou contigo perguntou se era possível votar e disseste-lhe que não, não era.”, Sair, correr para mais abraços, mais avisos, saber como é que estava o tratamento das exéquias, chegar a casa deitar-me depois de um banho, não conseguir dormir até o sol começar a espalhar uma luz vaga pelas frinchas da persianas, dormir então, um sono pesado cheio de sonhos e sobressaltos, levantar, banho, comer, olhar absorta para um dente que me caiu, aos quarenta e dois anos, aquele pedacinho de mim morreu, ajudar “Vá mãe, tens de comer, vamo-nos vestir e eu ajudo, sim, levo-as de carro”, a chegada do corpo, pela primeira vez voluntariamente olho para um corpo sem vida, tem um ar de estranho repouso, parece que posso só abanar devagarinho “Acorda!”. O dia todo de pé, doze, treze horas, não sei, aparecem pessoas, conhecidas, amigas familiares, estranhos, “Os meus sentimentos”, sempre que me sento tenho uma mola, falta-me o ar, sento-me no fim da noite, volto para casa, banho, deito-me não consigo dormir, dores alucinantes nos pés, uma bolha, levanto-me, é impossível manter-me ali, passo pelos pés uma pomada, que diz “analgésico e anti inflamatório”, promessas vãs, vejo como se não visse, sem som, borboletas, pássaros, focas, escaravelhos, que acasalam reproduzem-se, morrem, caçam, sobrevivem. Levanto-me, visto-me, como, é de madrugada, ainda não é bem de dia, está um carro já parado, um conhecido de sempre, digo ao Diácono, “Pode ir, obrigado!”, o carro funerário, o transito, o cheiro enjoativo das flores, “Ficas cá fora com o miúdo, Ana?!” “Claro que sim!”, “Podes secar esta flor da avó, colocas uma folha por baixo, outra por cima e uns livros pesados, esqueceste da flor e depois fica seca e espalmada para sempre”, voltar, voltar mais vazia, deitar-me, “A mãe tem de descansar um bocadinho”, cozinhar, colocar a mesa, sentarmo-nos os quatro, deitar-me, dormir, sim dormir, sair, ocupar mãos e mente com trabalho, ocupar os pés a andar, campanha, andar, doem-me os pés, deitar-me numa marquesa, tirar fotos de dentro de mim, o médico franze o nariz, “Mais três, pequeninos, mas novos, Dª Ana”, penso que não é bem comigo aquela conversa, “Se tivesses que lhes dar nomes, Ana? Saudade, Cansaço e Esperança?”, compras, limpar a casa, fazer o jantar, deitar-me, dormir?!Já é sexta-feira! Doem-me os pés!
Comentários
Abreijinhos.
Bjs
Respondeste-me dizendo que têm que existir dias assim. É uma verdade.
Mas, Ana, este teu dia, fez-me ver também que nenhum momento da nossa vida é banal. Tens razão Ana.
Quando mais tarde recordamos esses momentos, verificamos que, muitos deles, foram aqueles que mais nos marcaram.
Os teus pés irão ficar em condições de continuarem a exercer a função para que foram criados. Essas dores serão esquecidas.
Mas esses momentos que, sequencialmente, constituiram o teu dia não mais irão sair da tua lembrança por muito analgésicos ou anti-inflamatórios que sejam os momentos/dias que irás caminhar a seguir.
Paz e Luz para iluminar a tua casa.
E no entanto a vida é o que de melhor temos.
Abraço-te
Beijo
O corpo que vês num leito de morte não é a Pessoa que conheceste.
O corpo é matéria orgânica, o fato e o veículo de manifestação de uma consciência.
A Pessoa, suas experiências, suas recordações e suas interacções, estão neste momento noutra dimensão, perto de outros que partiram antes e que a receberam carinhosamente.
Já participamos neste processo. Por força de onde estamos colocados, vamo-nos revezando.
Beijos,
Zorze
um abraço grande e muita força.
Estamos separadas pelo Atlântico e unidas pelas mesmas questões....
É por tudo isso que vale a pena viver.
Bjs
Um beijo.
Vou tendo!
NI
Cada vez com mais vontade de viver!
Akhen
Para certas coisas não há pomadas!
Maria
Sem dúvidas.
Diogo
Ou será a roda da vida!
Zorzito
Sabes que ainda não encaixei essas coisas, para mim é um corpo a pessoa era e ficou nas memórias.
Duarte
Sabe bem o teu ombro.
Carmen
Tanto mar e tão perto ao mesmo tempo.
Fernando Samuel
Isto tem muitos dias assim.
LBJ
Os chispes estão melhorzitos.
Beijos