Os dias continuam cinzentos e a tendência será para piorar, mas ainda não faz frio, estamos naquela fase estúpida em que as botas são demais e as sandálias são de menos, é claro que já fiz a arqueologia dos roupeiros, já troquei com desgosto o caixote dos chinelos pelos sapatos mais fechados, reorganizei gavetas, sacos malas, caixas de cartão com encharpes, pashiminas, cachecóis, coisas de gaja.
Ainda não organizei outras coisas, preciso de organizar um esquema coerente que abarque dois filhos crescidos, um companheiro com horários trocados, um cão que começa a ter sinais de estar senil, a roupa que se acumula para lavar e estender porque consegui iniciar a proeza de efectuar obras nas traseiras e frontaria do prédio em simultâneo, tornando invalidas as cordas da roupa, os pombos doentes que entopem os algerozes como culminar de uma vingança para com os humanos, as folhas que caem e entopem as sarjetas, uma mãe que solicita colo e mimo como um bebé, um luto que ainda não fiz, a mudança da hora que ainda não fiz e baralho-me a olhar para mostradores e telemóveis, a caixa do correio que não me oferece postais felizes, cartas de guardar, apenas contas e promoções que não pedi, o relógio que teima em ser um corredor de fundo e me deixa assim a pensar no que é que se esgotou o meu dia porque não acabei o que comecei o que deixei pendurado de véspera, apenas arranjei novas coisas que se acumulam em equilíbrio precário á espera de serem resolvidas, um sabonete de alfazema, grande e cheiroso guardado com aquelas peças mais intimas e delicadas que ainda não usei, porque ainda não tive tempo de tomar um duche a rigor daqueles que não sejam a contra relógio, qual prova de ciclismo, para depois vestir aquela lingerie que é uma vaidade secreta porque só eu saberei que estou a usar aquele conjunto com remates de fitinhas e bordados, mesmo que por cima tenha apenas as calças de ganga do costume, com os ténis mais velhos aqueles que me dão bom andar.
Portanto preciso agora de fazer arqueologia de mim, um dia destes, juntar os pedaços desta mulher, deixar para trás outras coisas, estrear as tais rendas e o cheiro de alfazema, sábado talvez.
Comentários
Alfazema é o aroma que linka os espíritos. Sabias?
Fazer arqueologia de ti própria? Ainda és tão novinha, uma menina!
Além do sabonete de alfazema, junta sal marinho. Limpa o holo-chackra.
Beijos,
Zorze
Um beijo.
Ouvindo Vanessa da Mata, vou lendo com prazer as tuas palavras com cheiro a alfazema.
Porque tu és especial, vou deixar aqui uns versinhos de Junho de 1956
Mãos
Tu que,
de mãos obstinadamente metidas nos bolsos,
teimavas em caminhar
e que tinhas tanto para dar
nessas mãos teimosas e fachadas;
tu que,
de olhos voluntariamente distantes e frios
insistias em olhar;
sabe que,
não foi em vão que tiraste as mãos dos bolsos
e que deste carinho...
um abracinho
Lagartinha de Alhos Vedros
Sinceramente ri ao ler o post.
Respira fundo e pergunta a ti mesma quem tem a capacidade de alargar o tempo para colocar tudo em ordem. Tu. Então porque não usas essa tua autoridade?
Vais ver que ou te sobra tempo e tens tudo arrumado, ou te sobram coisas para arrumar e não tens tempo. Quantas coisas consegues fazer ao mesmo tempo?
49, já viste o teu problema. Tens 50 para fazer, ou para ir fazendo.
A opção é tua.
Quanto aos tenis que te fazem bom andar, vou dizer-te um poema de Mia Couto. Sabes que gosto bastante dele como escritor.
O Piso e o Passo
Envelheço como o sapato:
quanto menos sirvo
menos aleijo o chão
Antes,
eu buscava
conhecer um lugar.
Agora
apenas quero um lugar
que me conheça.
PAZ e LUZ na tua casa
Gosto de ti amiga.
Beijos
Anabela
Depois fico salgada!
Fernando Samuel
Imprescindivél!
Lagartinha
Não sou especial, tu é que me mandas uma prenda especial.
Akhen
Também gosto Mia Couto.
As 50 coisas para fazer é defeito meu, sou a primeira a oferecer-me para fazer mais uma.
Anabela
Quanto mais não seja vai ser uma boa noite :)
Beijos
Beijo
Lagartinha de Alhos Vedros